segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Mercúrio

Foi na oitava série. No colégio, esse era o ano das surpresas laboratoriais. Minha turma, guiada por um professor completamente desanimado com a aula, se inaugurava nas investigações da Química, brincava com papéis que mudavam de cor, fugia do cheiro áspero que alguns frascos inocentes teimavam em liberar. Tudo era novo e meio mágico. Mas nada se comparava ao que eu veria a seguir. De um armário baixo e meio escondido, o professor retirou um frasquinho de vidro. Não revelou que todo o desejo de uma pessoa poderia caber num frasco tão pequeno. Abrindo a tampa com indiferença, pôs, sobre a bancada de madeira, uma gota do líquido que havia no recipiente. Estupefata, vi uma esfera prateada deslizar sobre a plataforma sem deixar rastro, enquanto ele dizia: "o mercúrio é o único metal líquido." Aquilo era uma gota de felicidade! Nunca antes eu havia visto uma coisa tão linda e tão vulnerável... Era tudo o que eu queria tocar. E toquei. Imediatamente, a gota se desfez em inúmeras esferas que se espalhavam, como mágica, pela mesa. O professor, notando meu desespero, começou a reunir as gotinhas com as mãos e, à frente do meu olhar incrédulo, refez a esfera anterior. Ela estava intacta, formada completamente do impossível! Foi aí que decidi: eu seria a dona daquele metalzinho simpático. Ele me escolhera. Após a aula, cometi o delito: com duas coleguinhas, entrei furtivamente no laboratório e coloquei uma grande gota de mercúrio na palma da mão, enquanto elas vigiavam a entrada. Saí feliz e criminosa, e, como não há felicidade em que não se corra, corri, mas, como não há crime que não mereça sua punição, tropecei e derrubei a esfera prateada no chão do pátio. Ela se partiu em centenas de gotinhas - como meu coração fora da lei... Fugi com medo de ser apanhada em flagrante e, quando cheguei ao andar superior da escola, tentei ver o que teria acontecido ao meu ensaio de felicidade. Foi então que vi os olhos do zelador se arregalando de espanto enquanto ele varria minúsculas gotinhas, as quais, obstinadamente, se juntavam e cresciam em redondeza. Foi por isso que me perdoei: meu delito se transformara no meu primeiro ato gratuito de generosidade - eu deixava com aquele homem encantado a minha gota mágica. Me perdoo também pelo motivo óbvio: nunca me descobriram e, assim, escapei dos castigos. E, principalmente, me perdoo porque, algum tempo depois, encontrei um meio mais lícito de reaver meu tesouro - e assim quebrar termômetros se tornou um hobby. Até que minha mãe, sem entender por que tinha uma filha tão desastrada, decidiu só usar em casa termômetros digitais, me forçando a ir procurar a felicidade em outros - e mais complicados - lugares... 

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ad infinitum

[Enviesando...]

Vinham de lados opostos na escada rolante. Ele, confuso em meio à multidão. Ela, distraída. Pareciam existir segundo regras próprias, num fluxo de estranheza que ressaltava suas particularidades. No encontro, não se viram. Não sabiam que se procuravam. Eugênio, numa olhada descuidada para trás, a viu. Ao longe. Não, não a ela, ao movimento no shopping. Através da lente dos óculos dela, reconhecia cores e paisagens que não via a olho desarmado. Quando a perdeu de vista, esteve, pela primeira vez, desnorteado.

No cinema, o quase reencontro: fileira da frente, poltrona à direita, leve inclinação de cabeça. E lá estavam lentes que tornavam nítidas algumas cenas do filme. É verdade que, vez por outra, misturavam as cores. No acender das luzes, Eugênio via, desmoldurado, o engano: não era a mesma a dona dos óculos. Bem que desconfiara de uma nitidez diferente...

[O veredito.]

- Por isso você tem tantas dores de cabeça. 
- Qual é o problema, doutor?
- Precisa de óculos, meu jovem. Você tem hipermetropia. Só vê bem as coisas que estão longe.
- hum...
- Sua visão é distorcida, o que você vê não corresponde à realidade. E o que merece atenção passa por você, despercebido. Até que esteja longe.

[[Pra que inventar um nome pra uma coisa que todo mundo tem? Só se vê bem de longe, é da condição humana...]]

- Veja, aqui está o seu globo ocular. Aqui é a retina. O normal é a imagem se formar neste ponto. No seu caso, ela só se forma aqui. Um míope tem todo esse efeito ao contrário, vê bem de perto e mal de longe.

[[É normal ter hipermetropia, doutor. Ou miopia. O que vale a pena ver sempre está perto demais - e é indistinguível- ou longe - e se torna inalcançável.]]

- E os óculos podem ajustar as coisas?
- Sim, o único incômodo são as molduras que a armação constrói. Mas com o tempo a pessoa se acostuma. Aqui está sua receita.


 [[Toda visão é emoldurada, doutor. Todos tentam desesperadamente corrigir as distorções...]]




[Armadilhas pós-armação:]

[[A vida é desconhecida e familiar ao mesmo tempo. Muitas cores, muita gente, muito barulho. Tudo assusta e acalenta. Emoldurar dá segurança e controle. Em outras palavras, ilude.]]







[Dejá vu:]

Vinham de lados opostos na escada rolante. Ele, confuso em meio à multidão. Ela, distraída. Pareciam existir segundo regras próprias, num fluxo de estranheza que ressaltava suas particularidades. No encontro, não se viram. Não sabiam que se procuravam. Ele, numa olhada descuidada para trás, a viu, ao longe. Não, não a ela, ao movimento no shopping. Através da lente dos óculos dela, reconhecia cores e paisagens que não via a olho recém-armado. Quando a perdeu de vista, Eugênio se sentiu, pela primeira vez, acalentado. A sobreposição de lentes não o assustava. A vertigem até que era atraente.





[Art noveau:]

Na saída, chuva fina. Eugênio, mãos nos bolsos, sorria ao caminhar entre as minúsculas lentes que lhe caíam sobre os óculos. Trazia nos olhos um brilho recém-desarmado.






sábado, 7 de abril de 2012

Entrecortados

E o mundo escurecia. De fora para dentro, numa imagem circular. Luzes brilhavam em tons de vermelho, no centro do círculo. Seus sentidos, todos embotados, não eram guias seguros, mas eram os que tinha. Tateando, encontrou um fio dourado - seria útil para guiar seus sentidos? - um fio em meio ao labirinto obscuro. Perdia a consciência, aos poucos, sem deixar de perceber e calcular o que ocorria: algo pensava em como chegar até a cama, após diagnosticar uma queda de pressão. As luzes vermelhas cediam espaço ao marrom aveludado de promessas descumpridas. Sua vida era recortes coloridos, que costuraria num colcha sobre a qual deitaria quando alcançasse a cama. Mãos a seguravam: três pessoas, seu tato lhe dizia. Já não havia luz alguma, som algum – exceto o da respiração ofegante que adivinhava ter. As mãos, invisivelmente, teciam a colcha, costuravam seus pedaços com fios roubados de Ariadne – era sua culpa o atordoamento de Teseu, e isso lhe dava prazer, o prazer das respostas. Mas os pés se moviam e algo continuava calculando: sim, era a direção da cama e ela tinha os retalhos ainda semicosturados. Os sonhos libertavam pedaços de vida vermelhos e amarelos. Acordada, tudo era em tons de azul-anil-violeta. A cama a alcançou. Ao contato, a colcha se desfez, novamente, em retalhos soltos, que só se deixariam costurar na antecâmara onde se espera a morte (ou talvez um sono menos profundo). Apneia, apneia a ajudaria a retomar a colcha, ainda via fiapos da linha solta dos retalhos invisíveis. Não, o soro estabilizara a pressão arterial, as luzes todas se acenderam, chamando-a novamente à vida. Sons voltavam a ofuscar sua anti-respiração. A apneia era impossível com os pulmões vivos, sugando o ar contra sua vontade. A colcha era só um amontoado de fios e trapos, não se podia juntá-los com as luzes acesas. Nada mais fazia sentido, as respostas que a costura invisível lhe dera foram todas apagadas com o (re)acender da vida. Buzinas, exclamações de alívio, risos, cada expressão lhe tirava um fio de entre os dedos. A cada vez que ouvia “Lena!”, de alguém aliviado com seu retorno, um ponto da costura se desfazia. Já afastada da possibilidade de óbito, olhava a morte nos olhos e pensava: então era isso? Morrer era só isso? Morreria com respostas coloridas costuradas magistralmente por suas mãos? Mas a morte, em resposta, com um sorriso malicioso, murmurava: viveria com os retalhos descontínuos e sem fio que os ligasse? Sim, Lena viveria. Quando cansasse da busca, seria hora de reutilizar seu fio dourado. Ao menos, já não temia o labirinto.

terça-feira, 20 de março de 2012

Inter Rogado

Então, os sentimentos mudavam de cor? Amarelavam? Empalideciam? Não, os sentimentos eram da mesma cor em cada espinha ou ruga. No entanto, em sua relação contextual, as cores podiam se embaralhar. Desbotar. Descolorir. Ou, envernizadas, durar por tempos maiores e supostas eternidades - que duram até acabar sua fama de infindáveis. As filosofias prosseguiam, perguntas e dúvidas eram lançadas e rebatidas num pingue-pongue mental. Só que - ela sabia -, no fundo, ninguém entendia. O mais próximo que já chegara disso foi a compreensão azulejante de alguém que a vida, num lampejo de lucidez e bondade, cismou em lhe apresentar, para mostrar que impossível é uma questão de prefixo. E por essa delicadeza da vida havia muito o que agradecer. Afinal, como pode isso: compreender o que nunca se sentiu? (Im)Possível? Doía-lhe nos ombros o peso, ou a leveza - quem sabe distinguir? -, da não-reciprocidade pelo gesto que a vida lhe fazia. Doía-lhe até que se encurvava, se arqueava, assumindo a postura de uma grande e imperceptível interrogação violeta a passar na rua entre estranhos. Mais lhe valeria falar espanhol e ser o sinal inquiridor que inaugura, de ponta-cabeça, os questionamentos. Mais lhe valeria se dissesse, num ímpeto de coragem e mesmo sem confiança: incompreensão é uma questão de prefixo...

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pequenez


Fome, sol no solo, vida escaldante. O livro tratava de uma grande seca em que retirantes nordestinos despiam-se de dignidade em busca apenas da sobrevivência nua. Já outro nordestino falava, ritmadamente, dessa vida severina, em que se morre de fome um pouco por dia. E em qualquer Nordeste desse mundo, fomes, sedes e desconfortos de outra ordem usam seus imperativos - muitas vezes disfarçados em apelativos não menos imperiosos - para atormentar os pequenos seres humanos. Os pequenos. Pois os grandes estão inalcançáveis, enlevados em flocos de algodão, em seda e púrpura, despensando (e dispensando), por falta de tempo, o que incomoda. São os pequenos, quiçá medíocres, que se aventuram pelo pensamento semi-livre, tendo o sentimento semi-preso; que arremessam a cara dos seus conceitos em todos os muros previamente construídos; que sofrem fome, sede e nudez. Passam necessidades impalpáveis: as de espírito. São os insignificantes seres pensantes que se encontram em plena chuva num dia frio, ensopados até o juízo e sem saber como chegaram até ali. Nem sabem quanto da umidade é chuva, quanto é lágrima ou suor.  E, dedicando-se mediocremente a seus pensamentos, incendeiam-se com mais do que podem suportar. “Por que em menino a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?” Porque em menino tudo é pequeno demais por fora, muita coisa é grande demais para caber dentro. Os insignificantes são sempre, latentemente, às vezes pateticamente, “em menino”. Querem ousar espaço, sabendo que seu espírito limitado e inelástico não simpatiza com ideias de alargamentos. Querem alçar voo, mesmo sabendo que no seu reduzido espaço interior não cabe um par de asas abertas. Mas continuam tentando. Forçam com os pés, os punhos e o topo da cabeça, as paredes quase inelásticas do espírito; choram e gemem de dor; param para respirar, ofegantes, e depois, como que esquecidos do esforço sobre-humano, recomeçam a luta. Não sabem se um dia as paredes se distraem ou cansam da resistência gratuita. Não têm nenhuma garantia que possam oferecer como prenda ou usar como cobertor para enganar a febre. Mas precisam, com um imperativo interior, continuar lutando contra a matéria inelástica. Porque sem isso, seriam apenas grandes. Grandes espaços vazios. Ocos. E sem eco.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Novo em folha

Enquanto a vida vai seguindo seu curso e as pegadas denunciam de onde viemos, o vento gira sobre as nossas cabeças, tentando ensinar a lição: em círculo? Não! Em espiral!

Em espiral que não volta nunca ao mesmo lugar, embora volteie circundando o mesmo perímetro.

Em espiral, que sobe ou desce, enquanto permanece no mesmo rumo.

Em espiral, que muda diante do imutável.

O vento ensina em vão, não queremos aprender nem ter por completo o aprendizado. Queremos lembrar, periodicamente – geralmente, quando a espiral toca de novo o mesmo ponto – nossa existência espiralada.

Lembrar que tempestade e brisa são feitos do mesmo vento...

Que a poeira que voa em direção aos nossos olhos, inevitavelmente lacrimejantes, é feita daquela areia onde enterramos nossos planos e sonhos.

A vida precisa seguir com o vento, seja vendaval ou brisa. E seguirá, como a folha que o vento leva para onde quer, em espiral.

É bom às vezes olhar para trás, é bom ver lá as pegadas denunciadoras de por onde andamos.

É bom que algumas pegadas se apaguem.

E que outras façam parte da poeira a encher de lágrimas nossos olhos.

Mas, acima de tudo, é bom saber que nunca repisaremos nenhuma delas: não andamos em círculos.

Andamos em espiral.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

recondesconstrução

Um segundo de tremor havia deixado rastros de destruição inimagináveis. A plasticidade das coisas (e das pessoas) não acompanha a do solo. Agora, sob os pés antes firmes, um grande buraco cujo fundo não se via. Acima, ela, presa entre blocos de concreto desarmado. Imóvel do peito para baixo. Só do lado de dentro, algo ainda se movia, ritmado. Tum, tum, tum - como uma percussão que não desiste. Como o eco, que não percebe o próprio atraso e se julga som legítimo.  E, por não saber que é só eco, torna-se a mais forte evidência de um som julgado extinto, capaz de um segundo tremor e de rastros de reconstrução incalculáveis.

domingo, 10 de julho de 2011

Reflexões de Julia Puebla

Meus caminhos têm curvas sinuosas para me lembrar de ter cuidado. Têm árvores de raízes douradas, soterradas até o meio do tronco, para me lembrar da busca necessária. Não ando sozinha, acompanham-se centenas de eus que vivem em tempos diferentes e jamais morrem totalmente. Não existe paisagem à minha frente, é tudo em branco, à espera do colorido que dou. Então, sigo colorindo. Mas, se paro, as tintas todas, por inércia, seguem seu trajeto e, sem mãos que as guiem, espalham cor para todos os lados.

Só me resta concluir que é necessário parar para renovar a criatividade. Mas devo lembrar que essas paradas devem ser curtas, do tamanho apenas de um suspiro, para não comprometer a memória de como se anda. Às vezes, um ou outro desses eus seguram mãos de um tu, às vezes as mãos não se deixam soltar, às vezes esbarram num perfume alheio ou em cores de não-eu. Tudo o que vem de fora é instantaneamente agarrado, como se fosse necessário fugir do que é meu. Ilusão – quero apenas acrescentar ao meu espectro de luz visível as luzes que antes não via. Surpreende-me, então, surpreende-me sempre com cores novas, com perfumes só teus, com o esboço de um rosto meu na tela da tua vida, surpreende-me e te seguirei sem medo, a todos os tus que tu és.

Suspende-me entre o húmus e a nuvem carregada, remove a terra e mostra-me cada uma das raízes: mostra-me uma a uma, pelo tempo de uma vida, de forma que, durante meu último segundo, ainda haja o que descobrir. Pois, até quando te respiro, me sou. Sigo um caminho-sem-setas-ou-placas que me leva invariavelmente a mim e de mim só pede que preste atenção à paisagem que vai ficando para trás.

Pois na paisagem se acham meus inúmeros retratos. E um deles é teu.

Aquele que acabou de cair.

domingo, 19 de junho de 2011

A Vontade de Blimunda

“Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o
tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas
dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem
para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o
de olhar, que esse pouco é o que fazem os que,
olhos tendo, são outra qualidade de cegos.”
(José Saramago – Memorial do Convento)


E agora, diante do perigo, pensava no que poderia suportar: vê-lo contra a luz das 16 horas, à beira-mar, abraçando outra.Ou apresentá-lo à estranha que o levaria de suas mãos. Ou até ser madrinha de seu casamento com aquelazinha que não suportava. Mas não aguentaria vê-lo pular do nono andar. A morte era a única que ela não admitia ver de mãos dadas com ele. Agora, vendo as cores do perigo à sua frente, como sibila num mundo surdo às profecias, sofria com a descrença alheia. Ninguém evitaria o salto mortal, prestes a ser dado. Ninguém sequer notaria que ali havia um prédio de 9 andares de onde um garoto, mimado e desiludido, pretendia pular. Ela entendia os motivos ocultos. E mentalmente o perdoava, embora jamais pudesse desculpá-lo. Não era justo que fosse obrigada a olhar a ausência de cores de sua ausência. Não havia prédio algum no terreno para o qual ela olhava, mas era ali que, em frações de segundo, tudo aconteceria: edifício, varanda, ar. Na calçada, ficariam apenas as marcar de giz dos peritos e uns poucos fios da barba que o garoto teria um dia. Sabia ver as pessoas por dentro, com suas nuvens de vontades a exararem-se pelos poros. Era verdade o que diziam, que, se juntasse alguns milhares daquelas vontades voláteis, teria chance de alçar vôo? Poderia prendê-las a um balão e salvar o garoto do salto. Mas não havia tempo e, como via em cada vez mais pessoas, as vontades evaporavam em alta velocidade, substituídas pela próxima novidade. Desejava que a vontade do rapaz evaporasse, que ele desistisse de jogar tudo pelos ares apenas para sentir o vento de uma liberdade traiçoeira. Mas nem toda vontade de Blimunda era suficiente para fazê-lo casar-se com a estranha ou abraçar uma bela silhueta à beira-mar, às 16 horas. Não havia meio de mudar as vontades, como não havia de recolhê-las no seu balão. E não havia tempo: como uma bala, o corpo dele jorrou do prédio inexistente e atravessou o ar, sibilando. Lá estavam as marcas de giz. Blimunda sentiu um incômodo nos olhos: eram uns fios de barba que vieram com o vento. E que para lá voltaram, auxiliados por duas lágrimas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A dança

Ao toque da música, punha os sentidos do avesso para captar o que havia ali. Casais e grupos se moviam, num ritmo às vezes harmônico, às vezes próprio, na pista de dança. Luísa tentava deixar-se conduzir por Afonso, mas seu ritmo era mais próprio que o dele. Diante das queixas impronunciadas, expressas com olhares e franzir de testa, propôs a Afonso que a deixasse conduzi-lo um pouco. Ele tentou recuar, explicou que era parte da natureza do homem guiar o corpo feminino que o abraçava, mas, acabou cedendo, e, a contragosto, deixou-se conduzir por meia dança. A música tocava ao mesmo tempo em seu íntimo e ela, absorta em pensamentos sentidos, deixou-se levar um pouco. Quando percebeu o que ocorrera, atrapalhou-se com as pernas e teve os pés pisados... Tudo bem, o erro foi dela que, não sabendo ser uma dama, também não sabia deixar de sê-lo. Afonso, curioso, não entendia os motivos. Era tão difícil assim simplesmente segurar-se ao corpo dele e deixar que a levasse, a girar, a girar, dois pra lá, dois pra cá, a mover devagar os pés, com a cabeça à altura do peito (onde até poderia encostar, se precisasse de apoio)? Luísa não sabia explicar que, por ter começado antes da maioria das mulheres a tomar decisões vitais, baseando-se no próprio critério, não se lembrava de confiar no critério alheio. Mesmo sem saber explicar, propôs um método: Afonso a conduziria, mas, antes, indicaria o caminho a ser percorrido. Ele concordou e dançaram assim 3 canções inteiras, até que o improviso, esse intruso irresistível, veio meter-se entre os dois e, com um empurrão, derrubou a harmonia. Luísa continuava a não saber explicar, mas sentia que algo lhe faltava, não conseguia se abandonar aos passos imprevisíveis de alguém. Aquilo era o precipício: seus pés travavam ante o desconhecido. Afonso, convencido de que aquilo equivalia a uma obstinação feminista, deixou de achar qualquer coisa possível e foi buscar uma bebida. Voltou com uma mulher de vestido vermelho e quadris bamboleantes, entregou a bebida a Luísa e apontou-lhe uma cadeira – menos vazia que ela – onde podia sentar-se, com suas dúvidas. Foi assim que Luísa decidiu, selando a decisão com uma lágrima espremida, que nunca mais tentaria dançar. Os dias se passaram e Afonso não telefonou, teria talvez anotado o telefone vermelho e bamboleante por cima do número semi-invisível de Luísa... Outra lágrima, menos espremida dessa vez, selou de vez a abolição da dança. Mesmo depois de anos, convencida de sua inaptidão para o baile, ela apenas sentava e olhava as pessoas nas festas – geralmente, casamentos (sempre alheios) – enquanto vaporizava com álcool os sentidos que a música virava ao avesso. Não fosse o álcool e não teria aceito o convite de Mauro, não teria segurado sua mão, não lhe teria oferecido a cintura, não teria chegado àquela proximidade que só com o consentimento da dama se deve dar. Não teria encostado a cabeça no peito dele. Não lhe teria molhado a camisa com duas lágrimas há anos reprimidas. Não saberia lhe falar que não podia dançar com ele por precisar sempre saber para onde a estavam levando, antes de dar seu consentimento. Há quanto tempo se conheciam? Ele não sabia quem ela era, não podia descobrir sua maior fraqueza tão rápido. Mas, Luísa já se tinha abandonado. Mauro apenas a recolhia do chão, com as mãos em concha, enquanto, com pés um tanto vacilantes, suava, tentando fingir passos de dança. “Não sei dançar” – confessou ao ouvido de Luísa. Ela, confiando-se pela primeira vez aos braços do homem que a envolvia, respondeu: “também não sei, mas já ouvi dizer que é simples, basta que você me abrace e me conduza”. “Para onde a devo conduzir?”. “Para onde quiser...”. Assim, no somatório de suas supostas incompetências, entregaram-se à coreografia que menos desfizesse aquele abraço...

terça-feira, 12 de abril de 2011

pensamentos soltos...

Preciso entender por quê... essa música me faz lembrar de mim. Certas horas deixam a luz com uma textura agradável. Gosto de viver essas horas. Em que pensava o rapaz que, no ônibus lotado, sorria para o ar? Queria ler pensamentos... Mas tenho medo das coisas que leria por aí. Vou caminhar mais rápido para encurtar o caminho. Os caminhos são sempre longos, e vivo tentando encurtá-los. Só sei andar por chão de terra batida... Belos olhos. Se eu pudesse os veria sempre. Mas a vida dobrou a esquina comigo. Como os mosquitos conseguem voar na chuva? Gosto do cheiro acre de terra molhada. Mas só se estiver bem molhada mesmo, senão fere meu olfato. A água é uma necessidade visual. Gosto de sentar em frente às águas... me acalma. Há quem me ache calma e tranqüila. Não sei se sou assim, mas em respeito a essas pessoas que vêem algo positivo em mim, tento não me exaltar. E às vezes exagero: deixo de me exaltar quando isso seria a própria salvação de minha sanidade. Não sei se sou muito sã. Sinto o gérmen da loucura a me habitar. E ele também salva. Da rotina medíocre. Odeio rotina... Tento quebrar, sempre. Calmamente, sem me exaltar. Quebro em frente às águas. E escolho a próxima lista de coisas a fazer. Sempre faço listas do que tenho de fazer, se houver mais de três coisas. Meu subconsciente só conta até três. Anoto minha vida em papéis avulsos. E nunca os jogo fora. Exceto em ocasiões especiais. Já houve uma ocasião assim: queimei vários papéis. Parte da minha vida foi queimada junto e me senti mais livre. Acho os passarinhos realmente livres. Podem voar e cantar, coisas que não sei fazer. A liberdade consiste em tudo o que não se pode fazer. Talvez alguém me ache livre, sem saber que me prendo muito, não ao chão, mas a coisas. E a pessoas. Algo sempre me leva para cima, para fora da realidade concreta. Agarro-me a tudo o que me permita voltar. Será que um dia não voltarei mais? Será isso a loucura? Ou apenas uma abstração de meus neurônios, brincando com as sinapses... Sensações me invadem o tempo todo e me fazem sentir fora de onde deveria estar. Como se não fosse um ser normal. Como se não pertencesse... Preciso pertencer. I need peace and love. Às vezes mais de peace, às vezes mais de love.  Construí um castelo no meu lado avesso e sou sua única habitante. Gostaria de me mudar para um lugar mais arejado. Fora de mim. Também sorrio nos ônibus lotados. Vejo passarinhos voando através da janela. Vejo mosquitos que conseguem voar na chuva. Sinto cheiro de terra molhada, bem molhada. Mas não está chovendo... A luz e as cores me fazem querer seguir. Ou querer parar. Há músicas tristes que me fazem lembrar do que me tornei. Há quem me ache normal. Há quem pense que deve ser fácil me ser. Mas não é. É bem difícil: pesado e desconfortavelmente úmido. É frio e escuro. A escuridão tem um lado bom: realça qualquer pequena luz. Ouço o vento, que também é música, também é triste e me faz lembrar de pessoas que amo. Amo o cheiro das pessoas... Mas não de todas. Cheiro de pele me faz sentir humana. Por isso me agrada. Hoje vi pessoas que me tocaram profundamente. Quase me transformei nelas. E em silêncio as compreendi. Nem sempre penso, às vezes só sinto. Aí compreendo. Sento depois para pensar no que senti. Ou não. Esqueço de pensar. Mas quando penso e sinto juntamente o mundo se abre. E eu nem sabia que tinha as chaves. As chaves úmidas que enterro na areia bem molhada pela chuva. Ouço o barulho da água me dizendo para procurá-las e abrir com elas o mundo e as portas do meu castelo escuro. Mas não chove... Sento então em frente às águas e ouço o vento. Compreendo sem pensar. Basta sentir.

sábado, 2 de abril de 2011

Ex-posição...

E não é que no meio do parque construíram uma galeria?! Exposição inaugural de Abelardo da Hora, com esculturas e desenhos, tudo grátis. A esse preço, Juscelino, que nunca fora a uma exposição, resolveu ver do que se tratava. Logo à entrada, a escultura “A Fome e o Brado” chamou a atenção do adolescente: estátuas de olhos arregalados e ossos visíveis, encostadas umas às outras, sem individualidade. Por trás do amontoado de gente e ossos, uma mão em robusto desespero, aberta em direção ao céu, q é para onde se brada à espera da saída para a fome. Fome de quê? Impossível não se emocionar com essa escultura. As fomes humanas se manifestam todas com a mesma intensidade, são todas retratáveis pela mesma imagem. Aparecem à frente de um brado em desespero, rumo a um céu de onde, às vezes, cai apenas chuva, perpetuando a fome... Juscelino se lembra de mostrar respeito: chuva, para quem mora à beira de um rio recifense, é a ameaça pingando sobre o mundo. Um detalhe impressiona o garoto: são os ossos expostos nas esculturas – costelas, metacarpos, mandíbulas salientes. Impressiona-se, mas não sabe por quê... Raciocina que esse, afinal, é o nosso lado de dentro – ossos. O que Juscelino ainda não sabe é que, por vezes, aquela alma ossuda – nosso legado em qualquer fome – insiste em se exibir, mostrando, no peito vazio, ossos; nas mãos sem sentido, ossos; no rosto deformado por choro ou insônia, cada vez mais ossos. Alma rota, alma amarrotada, com olhos fundos de desesperança: o pleno retrato da fome do mundo, da qual não escapa nem quem come seis vezes ao dia... Juscelino caminha pela exposição, seus olhos agora estão muito mais abertos do que quando entrou. Ao lado, outra escultura: “Desamparados”. Capturada a penúria humana: personagens cujas bocas escancaradas são buracos profundos de onde se adivinha um grito, buracos sem dentes – e para que haveria dentes, se aquelas bocas não comem nem riem? Juscelino sente a garganta apertada, mas não entende os motivos – ainda não aprendeu a fazer sentido. Resolve que escultura é uma arte incômoda e vai olhar os desenhos pendurados na parede da galeria. Mas sua sensibilidade já fora tocada, não havia como recuar. Nos esboços a lápis, retratos de uma penúria em que humanos e porcos se confundem. Num dos quadros, uma mocinha que o olhava, como se lhe perguntasse “e agora?”. Ele viu a data do quadro: 1962. Sua mãe tinha 12 anos naquela época e uma vida semelhante. Ou não? Na outra pintura, quem lhe aparecia era a figura da avó a carregar uma lata d’água na cabeça e duas crianças ao lado: ele e sua mãe. Com a cabeça tonta e os olhos úmidos, Juscelino saiu da galeria, ofegante: havia se visto, havia se reconhecido nas obras, havia tocado o desamparo da sua essência humana. Mas como, se nunca experimentara aquelas realidades? Antes de ter respostas, olhou pela porta de vidro e viu, a despeito da fome e do desespero ao redor, a escultura de um casal: seus corpos sentados um ao lado do outro, num abraço que os transformava em metades. Olhavam-se nos olhos e quem os olhava via a mesma face em ambos – espelho, fusão, amálgama.Completude, enfim? Talvez a fome humana seja melhor suportada a dois. Juscelino se lembrou de uma frase que ouvira na escola: é que só a antropofagia nos une... E, para aquela boca sem dentes que descobrira em si, esboçou, enfim, um sorriso completo.

                                                                      

sábado, 26 de março de 2011

Morro-do-Pico

“Não sei quem me lê: tive a necessidade de escrever esta carta e enviá-la a um destinatário qualquer – que selecionei, sem critério algum, na lista telefônica – para tratar de um assunto de extrema importância, uma descoberta que fiz hoje. Em visita a um arquipélago na costa nordeste do Brasil, deparei-me com o Morro-do-Pico e tive de fotografar com palavras a grande metáfora de terra e pedra que se erguia em minha frente. Prezado alguém que me lê, saiba que este é um assunto urgente, que só pode ser compreendido por quem vive e apalpa o ar ao redor de si, tentando entender. Portanto, se você não é desses, coloque a carta em outro envelope, copie um endereço qualquer no verso e a ponha no correio. Mas se você quer entender, mesmo que não saiba o quê, guarde este mistério: no Morro-do-Pico, de cada ângulo que se olha, de cada ponto onde alguém se posta, o morro muda, torna-se irreconhecível, suas cores se transgridem e se mesclam. E cada vento que sopra carrega em si cores novas que despeja sem piedade sobre a montanha. Para entender bem a vida, é preciso uma volta pelo Morro-do-Pico. Porque a vida é um morro como aquele. A cada vento, a cada passo, a cada escolha, a paisagem muda. Por isso, não importa quem você seja, não importa onde more, o que faz da vida nem quem tem ao seu lado – só importa para onde você olha de cima do Morro-do-Pico. É tudo uma questão de onde está e de para onde aponta o seu olhar. Como naquele dia em que alguém, em cuja testa tatuei “meu amor”, se foi (alegando sentimento desgastado) e eu fiquei (defendendo com palavras sangrentas meu orgulho em carne viva): os olhos dele a leste e os meus a oeste, mirando a mesma Praia-da-Vaidade. Ou como quando minha vida implodiu e só sobraram cacos espalhados: meu olhar apontado para o sul, vendo a Baía-da-Desesperança. Ou ainda como o dia, o amanhã de antigas feridas, em que alguém me sorriu com amor novamente: eu olhando em direção ao norte, testemunhando o Cabo-do-Eterno-Retorno. Ou quando frequentemente renovo minhas esperanças no mundo, na vida e na humanidade – incluindo, em grande parte, a mim mesma: meu olhar apontado para o cume do Morro-do-Pico-da-Vida. Para se guiar nesse morro, não é preciso mapa ou bússola – basta aprender a virar a cabeça com o vento e olhar em todas as direções... E agora que o vento lhe trouxe o segredo do Morro-do-Pico, mova a cabeça e escolha para onde vai apontar seu olhar. Mas lembre-se: a cada vento, a paisagem continuará a mudar... Então, sem desespero, mude também o foco.”

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

factus putrefactus temporis

Vou contar uma história como a maioria das histórias – com começo, meio e fim. O que essa história não tem é sentido. A não ser que você veja sentido em um homem ser engolido por uma ostra negra ao andar na areia da praia. Ou em um homem ser abduzido por sua própria vontade a um planeta inexistente. Pois bem, começo a narrativa apresentando o cenário: uma rua deserta que desembocava em pleno nada. Não posso deixar de dizer que tudo aconteceu à meia-noite, em ponto. Um minuto antes era ainda sexta-feira. Um minuto após será já sábado. A meia-noite é aquele momento suspenso num limbo onde coisas insólitas, como esta história, podem ocorrer. Em meio a esta rua, havia um homem da cor da noite. Ele não sabia, mas a noite morava nele. Ali, confundidos homem e noite, via-se apenas um fio de sangue a escorrer pelo canto de uma boca que não se sabe mais a quem pertence. O homem dirige-se a uma pedra, colocada no meio da rua pelo orgulho de um animal ferido – não se deve estranhar esse fato, o orgulho ferido pode tudo, até uma pedra no meio da rua, da noite, do homem – e, sem aplicar mais força do que seria necessário para abrir uma porta, ele levanta a pedra (só a esta altura me lembro de dizer que a pedra era duas vezes maior que o homem) e posiciona-se, contraído, embaixo dela. A pedra acomoda-se novamente, como se pousasse sobre nada além de terra batida. O vento passa assoviando pela rua, chama o nome do homem. Silêncio... O sol bate na pedra, causa-lhe sombra, primeiro a leste, depois a oeste. E só há silêncio... Outros homens, iguais ao primeiro, diferentes apenas nas cores, verdes, azuis, vermelhos, amarelos, passam cantarolando o nome que aprenderam com o vento, mas a resposta é, como sempre, silêncio... Não. O homem não morreu. Não tornou-se pedra. Nem terra. Nem húmus. Séculos depois, o homem ergue a pedra, como se abrisse uma porta emperrada pelo tempo, e descobre que não há mais ninguém ali esperando o seu retorno. O vento ainda chama, mas, em um língua antiga, há muito desconhecida da humanidade. Na rua escura, o homem se confunde com a noite e dá-se conta de que está sozinho. O chamado é antigo, ele não sabe como responder. E não faz diferença, porque, neste momento, a noite engole o homem. Ninguém nota nada. Apenas o vento, assoviante, cantarola o nome antigo, obsoleto, inútil, que o orgulho de um animal ferido esmagou sob uma pedra, agora pulverizada pelo tempo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Restos e Sobras

...Luísa viu por dentro dele. Tinha esse poder misterioso às vezes. Olhou a fotografia e enxergou o quanto ele ainda amava Maria: na imagem, ela se encostava de leve em seu paletó e imprimia, com letras douradas, o tamanho daquele amor que era só dele. Só dele. Sem ela. Sem eles. E era um amor tão grande e sufocante que o pensamento de Luísa entoava, involuntariamente, um hino – gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso, e teu futuro espelha essa grandeza... Ela viu por dentro da foto: era Apolo com Dafne, embora pintados de outras cores... Luísa parecia ver Apolo, o deus da poesia, senhor das flechas, da música e da beleza, diante de si.  À sua frente, brincava Cupido com suas pequenas flechas cruéis. E ali, diante de Luísa, travava-se a lendária discussão entre os dois deuses sobre quem era o senhor das flechas. Apolo gabava-se de derrotar com elas o monstro-serpente de Píton. Mas Cupido, que herdou da mãe o poder de ser extremamente cruel, nada respondeu. Apenas apontou seu arco na direção de Apolo e disparou sua flecha mais afiada. O projétil atravessou o peito do poeta e saiu-lhe pelas costas, mas, como era de se esperar de uma flecha do Cupido, não o matou – apenas feriu-o profundamente de amor.  Com outra flecha, de ponta arredondada e capaz de inspirar a repulsa pelo amor oferecido, Cupido atingiu Dafne. Luísa via e não podia negar que a poesia pontilhava o ar neste momento. Dafne não oferecia esperanças de amor a Apolo, por mais belos que fossem seus poemas. E Luísa, que já havia sido atingida em outras ocasiões por flechas arredondadas e pontiagudas, causando e sentindo o sofrimento, só agora percebia que o projétil que cruzara o corpo de Apolo não parara até atingir seu próprio peito. O sangue manchava a roupa dela e era difícil acreditar que isso lhe havia acontecido. Já por um bom tempo tentava esquivar-se das flechas pontudas que varavam os ares. Falhara, não conseguira esquivar-se desta. Conta o mito que Dafne, cansada de fugir, transformou-se numa árvore, um loureiro, do qual Apolo retirava folhas e trançava como coroa – rei de si, coroado de lembranças. Mas Luísa não chegou a ver isso. Olhava a foto, Apolo e Dafne davam lugar a Maria e ele. E, apenas em sua roupa, algumas gotas de sangue ainda pingavam...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Bolha de sabão

            Não, não queria. Era só o que Joana pensava. Não queria, absolutamente. Sentia o peito pétreo, a alma intocável. Mas ao ouvir o trecho da poesia, a dureza dentro dela começou a se dissolver. A sensação trazia consigo imagem e textura: uma bolha de sabão. Linda, fina, efêmera ia a bolha, a levitar, arrastando consigo todas as filosofias que podem permear uma vida, arrastando-as e lançando-as no vazio. Uma bolha de sabão: apenas o contorno, uma moldura, em volta do ar. Joana não queria. A poesia transformara-a numa mistura heterogênea de sensações confusas. No entanto, não havia com que se preocupar, bastava um pouco de pressão e... logo a bolha estouraria: Joana continuaria a não querer. Foi então, atravessando como uma flecha este pensamento, que o celular tocou. Joana atendeu e reconheceu a voz de Raul: emoções heterogêneas a envolveram. Sua mente estava calma, sua voz estava calma, suas pernas estavam calmas. As mãos, porém, ficaram geladas. As mãos de Joana sempre pensavam demasiado devagar e demasiado alto. Eram indiscretas, expunham sua alma, como se quisessem ter nascido olhos. A bolha de sabão entalou-se-lhe na garganta e não havia meio de tirá-la de lá. Não adiantava tossir, pigarrear nem engolir qualquer alimento. Joana compreendeu que tudo isso era efeito da poesia, não se sentiria assim se Raul tivesse telefonado em outras circunstâncias, numa hora sem literatura. Que fazer, agora? Estava com a garganta obstruída por uma bolha de sabão indestrutível. Como dizer a alguém o que sentia? Como pedir ajuda? Que voz poderia transpor tamanho obstáculo?Nas línguas que conhecia, não havia uma palavra que exprimisse sua sensação, era um momento de mudez profunda. Raul estava perto do local onde Joana se encontrava. Ela sabia que o veria em alguns minutos. Suas mãos, sempre retardadas e indiscretas, congelavam. Todo o resto permanecia calmo. Joana tentou apressar-se e fugir, mas sabia ser impossível: encontraria Raul a qualquer momento, e não lhe falaria nada, pois tinha uma bolha de sabão atravessada na garganta. Raul chegou. As mãos geladas de Joana acenaram. Ao primeiro contato com a voz dele, a bolha estourou, deixando na língua um gosto amargo de sabão. Joana despediu-se e se foi, com fel na boca. Libertara-se e voltara a não querer. Não, não queria, absolutamente. No entanto, as mãos... ah, as mãos continuavam geladas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Papel de gaveta

Escute, Guilherme, esse é o som que passa pelo meu coração todas as manhãs, quando acordo já pensando em você. Está ouvindo? Sim, sim, é o som do vento, isso mesmo. É também o som do sol às quatro da tarde, em frente a um rio ou ao mar. É a imagem de água profunda, rebrilhando aos últimos raios de sol, enquanto o vento sopra... Agora você entende? É por isso que não consigo abandonar você – porque te sinto com meus sentidos de dentro. Não sei como você chegou a essa área de difícil acesso, que foi tão pouco habitada ao longo da minha vida. Mas sei que devo agradecer: há muito tempo ninguém passava por aí e isso já me fazia duvidar da existência do caminho. Você chegou cedo e eu já vou tarde, nossos espaços coincidem, mas nossos tempos não... Por isso sei que não devo te pedir para ficar, nem posso me oferecer para ir. Mas esse aparente problema não nos incomoda, não é? Sinto que não. Somos, de certa forma, a mesma procura, a própria busca pelo que virá. Não há encontro entre caminhos paralelos, também não se responde a uma pergunta com outra – mas nada impede que entre elas haja eco. E nada impede que o eco siga seu caminho. Dizem os matemáticos que retas paralelas se encontram no infinito porque, dizem os físicos, o espaço é curvo. Por isso preciso te confessar: o infinito é minha maior necessidade. Algo me diz que nossos caminhos paralelos tiveram seu breve encontro no infinito em mim. Os matemáticos e os físicos não sabem dizer se esse fenômeno se repete, e a maioria deles nunca teve a experiência em si e segue repetindo o que dizem os livros. Mas eu não sou matemática nem física, o que experimentei me veio da poesia do vento, um vento que tocava jazz e bossa quando você passava. Como agora, quando estou dizendo isso ao tu que permanece comigo enquanto você segue com sua vida. Porque eu sei quando amo alguém. É assim: esse alguém vai embora, e continua comigo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Reflexos

... De repente não era ela quem indagava da vida, mas a vida que lhe cobrava respostas – e como sempre, não cobrava em palavras: a vida cobra em atitude, nós é que inventamos a necessidade de verbalizar. Olhou-se no espelho e era como se a imagem lhe penetrasse fundo os olhos, querendo ver a atitude que não vinha. Assim acuada não conseguia responder. Precisava de espaço. No espelho já não cabiam ela e sua imagem, o quarto lhe parecia pequeno, estava sem ar. Ofegante, abriu a janela e sentiu a chuva bater-lhe no rosto, com a delicadeza de um beijo e a frieza da morte. A resposta existia, e ela a conhecia bem. Mas como agir, se não recebia nenhum sinal? Tudo não passava de coincidências... Quase despida, com os olhos cerrados, sentia o vento úmido trazer-lhe recordações do que era o amor, de como havia felicidade até em respostas feitas de sons sem nexo. Porque amor é atitude, não se faz com frases polidas. Palavra nenhuma o alcança. Pergunte a quem já amou se não prefere um olhar, um toque ou um suspiro. Lembre-se de quando você amava: preferia o verbo ou ação que ele representa? Todo linguista adora supervalorizar a palavra, mas a verdade é que os sentimentos são mudos. E enquanto a palavra é invenção e é preciso perceber como se constrói, todo o resto é descoberta e só precisa acontecer. Primeiro vem a sensação, tornando-se sentimento; depois criamos a palavra para imortalizar o não-verbal. E ao imortalizar, matamos. Então, abriu os olhos e viu a noite: a escuridão de fora realçou a luz interna e ela entendeu. Despiu-se de vez, deitou-se e dormiu, sentindo-se parte da noite, parte da chuva e do vento. O sinal era ela. Coincidência era só uma palavra e significava estar vivendo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Balada do adeus

E você não faz ideia de quantas noites chorei em meu quarto, sem um ombro sequer; e muitas vezes você me viu com os olhos vermelhos do pranto recente, mas não percebeu ou não se importou. Não sabe quantas solidões, quantas angústias, quantas vergonhas por sua causa. Enquanto você sacia seu egoísmo, as minhas afeições secam por você. Não me venha perguntar depois o que houve. Não venha me culpar depois de amanhã. A culpa é sua, por todos os seus infortúnios, e a vida, ah, essa te deu mais do que você poderia desejar com sua falta de critério. Eis alguém que joga fora o que tem de mais importante por umas patacas de algodão doce. Eis alguém dado a arrogâncias muito maiores do que as realidades do mundo: as frias realidades de quem se confronta com a morte e a dependência todos os dias.

 Cansei de você. Cansei de sua auto-piedade. Cansei de parar minha vida para aparar as sobras do lixo que você escolheu amontoar. Não posso ser responsabilizada por isso. Você escolhe, é justo que você pague, que assuma as consequências. De agora em diante vou viver cada segundo de minha vida, acendendo cada centelha com meu sopro. Não morrerei por você. Morrerei, se for o caso, por meus pecados, como tem de ser, não pelos seus. E não vou comprar esse determinismo barato, que é seu jeito de manter tudo sob seu controle e se eximir da responsabilidade. Você joga muito bem com as palavras, tem lábia. Mas não me convencerá mais. E eu – eu também sei falar. Minha mente não vai estar nas suas mãos, nem meus pensamentos nos seus ouvidos. Há um extenso precipício que apenas cresce mais a cada dia entre meus lábios e seus ouvidos.

Se a conversa não interessa, você muda de assunto, se incomoda, cala com gritos as minhas palavras, distorce realidades, fatos, provas: escava com os dentes o abismo que só cresce, só cresce, até que um dia, por fim, você não será mais sequer visível. Não sei se nesse dia serei livre, mas estarei surda aos seus discursos bolorentos contra vivos e contra mortos, sempre a seu favor. Estarei impermeável a suas palavras ácidas e corrosivas. Não confio em você. Não amo você. E é muito cansativo fazer algo que deveria ser motivado por amor quando tudo o que se sente é dever e obrigação. Por isso, saboreie a solidão que você buscou: esse ano não vou compartilhá-la.

Vou achar um jeito de relaxar essa tensão infernal que você despeja sobre mim: uma filosofia, uma música, uma imagem, um perfume... qualquer coisa que me leve a outras realidades onde você não se encontre. Tive muitos momentos bons dos quais você não sabe e é reconfortante pensar que nunca saberá. Não poderá atirar pedras da sua catapulta sobre eles. Não poderá julgá-los. Estão em lugar inacessível para você. Às vezes tenho a impressão de que cachorros estão ladrando em alvoroço, são seus discursos mais fervorosos: discursos de cachorro bravo. Assustam, machucam, mas não deixam uma palavra de lição. A casa com você é cheia de barulhos hostis que não combinam seus acordes com os meus. Anseio a uma paz sem você. Sem latidos de qualquer espécie. Paz de chuva batendo na janela, de sol nascendo na varanda, de vento entrando pela sala enquanto toca uma mistura de jazz com bossa e eu penso em pessoas que amo. Está aí a imagem que talvez me salve. Sabe de uma coisa? Vou deixar você em outro mundo e vou-me embora construir minha Pasárgada!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Para que serve uma aula de Física...


Sonhei que eu era a hipotenusa e você um cateto oposto, mas não estávamos sós neste nosso amor: havia um triângulo retângulo. Nas alturas dele encontrei sua projeção... Foi aí que conheci o cateto adjacente. Troquei você por ele, passando para o outro termo da equação, e com ele tive três senos: 30°, 45° e 60°. E ficamos tão distantes quanto os limites da circunferência estão do seu centro – tudo por um raio de dois centímetros. Aborrecida com tudo isso, tornei-me um prisma óptico. Rejeitava a luz, quando seu ângulo não me agradava, e a refletia difusamente. Cansada de reflexões, refratei-me num meio mais refringente. A velocidade mudou meu modo de pensar e você me viu bem mais próxima da normal. Você ficou com ciúmes e associou-se com espelhos planos, mas apenas conseguia formar uma imagem enantiomorfa do que antigamente fora o objeto real de nosso pincel de luz amoroso. Esgotei-me de tanto sonhar, atingi meu ângulo limite e fui vítima da reflexão total que me expulsou do mundo dos sonhos. Acordei desiludida.