sábado, 17 de abril de 2010

Fulano, o Doido.

A vida é cheia de atitudes inesperadas. Às vezes, desesperadas. Às vezes, desesperançadas. Tenho um vizinho muito agitado, que fala extremamente alto e não tem noção de privacidade. Todos estão acostumados a chamá-lo de Fulano, o Doido, como se a loucura mesma lhe servisse de irônico título de anti-nobreza. E são poucos os que não se incomodam com o barulho que ele consegue fazer. Um dia, Fulano disse a sua prima que havia visto uma saia feia, a qual que lhe cairia muito bem. Disse-lhe assim mesmo, a saia é feia e só em você ficaria bem. A prima zangou-se, claro, e fulano não soube dizer-lhe que só em alguém muito bonito um adorno feio cai bem. Hoje, descobri um lado oculto da história: nessa época, Fulano ainda não era o Doido. Pois houve época em que Fulano era só Fulano. Uns 20 anos atrás, ele era saudável, falava baixo e estava apaixonado por uma vizinha sua, uma mulher que até hoje mora na mesma casa, próxima à dele. Nunca namoraram. Mas sempre que saía, Fulano lhe trazia algum presentinho. Até que um dia, a mulher, talvez cansada da bajulação gratuita, resolveu ter uma conversa franca com ele, e disse que qualquer esperança era vã. Fulano não soube lidar com o desapontamento, ou melhor, lidou a seu modo: talvez numa tentativa desesperada de ir de vez para o mundo dos sonhos, tomou 90 comprimidos para insônia. Meu pai me contou que ele foi internado num hospital onde dormiu ininterruptos 13 dias. No 14º acordou, mas nunca mais voltou a si, não se sabe se por efeito dos remédios ou por medo de encarar sua fria realidade, sem a mulher dos presentes. A quem dedicar seu tempo? Fulano passou a beber muito, a fumar muito, a falar cada vez mais alto. No entanto, de uns tempos para cá, via-se um menininho sempre próximo a ele, em sua casa, em seus braços, para lá e para cá. E ele passou a cuidar do menino, que não sei de onde chegou, creio que de uma situação pior que a sua. Fulano passou a beber menos, só não deixou de fumar e de falar alto. Era uma atitude que lembrava Chaplin e seu garoto. Agora que o menino já está maior, não se sabe quem cuida de quem, mas eles se entendem, como dois entes que se adotaram. A sanidade mental que meu pai já viu, Fulano nunca mais recobrou, mas hoje ele tem motivos para continuar vivendo. Porque a vida... a vida é cheia de atitudes inesperadas... E depois de saber dessa história, seu hábito de falar alto já não me incomoda, pois percebo que é apenas um grito dizendo que, em algum lugar, algo, de vez em quando, ainda dói.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poço de perguntas

 Tinha oito anos. Oito anos e uma vivacidade, um interesse pelo mundo, que a iluminava toda. Chamava-se Marina. Um dia, sua professora, percebendo o grande potencial de Marina rumo ao saber, a presenteou com um livro de poesias infantis. Marina leu e releu o livrinho várias vezes, mas sempre se perguntava por que alguém escrevia até o meio da página e não usava o espaço todo, se ela ao copiar as lições escolares era incentivada a ir de um canto a outro da linha de caderno... Concluiu que o autor na certa havia faltado a algumas aulas e perdoou-lhe o desperdício de espaço.

No fim de semana, seu primo Douglas, de 16 anos, introspectivo e pensante, estudava em voz alta para uma prova de Física. Marina escutava atentamente e assombrou-se com a idéia de que havia explosões muito grandes e fortes no sol, que não podiam ser ouvidas por algum motivo que não entendeu bem. Mas ficou extremamente feliz pela existência do motivo... “Já pensou como seria difícil dormir com o barulho das explosões?” – perguntava ao primo. Desde esse dia, sempre que o primo ia estudar para as provas, Marina sentava-se perto e escutava com atenção. Gostou muito de saber que o ar é composto por coisinhas (cujo nome ela havia esquecido) bem afastadas umas das outras e que isso permitia que ele ficasse bem apertadinho num recipiente, era só empurrar as coisinhas mais para perto, havia muito espaço. Ficou feliz de saber disso porque a preocupava imaginar que cada bebê que nascia ocupava lugar no espaço e assim, com o aumento da população, o ar poderia ser expulso do planeta se não fosse possível comprimi-lo. Ah, essa descoberta aliviou o coraçãozinho de Marina.

Um dia, seu primo não estudou. Marina ficou tão triste. Então, pediu-lhe que contasse a ela algo que havia aprendido ultimamente. Ela tinha muitas perguntas que as pessoas ainda não respondiam. Seu primo falou-lhe então sobre uma certa lei da natureza: nada se cria, nada se perde. Foi o suficiente para a pequena Marina fazer greve de fome. Preocupados, seus pais indagaram o motivo e receberam a resposta: “nada se cria, nada se perde. Logo, quando um bebê nasce, a terra fica uns três ou quatro quilos mais pesada. Mas quando um adulto morre, ela perde dezenas de quilos. Então, como nada pode ser perdido, as pessoas que ainda vivem acabam precisando engordar para o planeta manter seu peso. Eu não vou comer, senão ficarei obesa, há muitos adultos morrendo no mundo. E obesidade prejudica o coração.”. A resposta chocou os pais. Marina foi levada a uma psicóloga, na tentativa de que voltasse a comer. Mas foi tudo em vão. Só se alimentou novamente quando o primo lhe explicou o restante da lei natural: tudo se transforma. “Pode comer, sua boba, você vai transformar a comida em energia e não vai precisar engordar pelo planeta.” E Marina voltou a comer.

 Preocupados, seus pais proibiram que Douglas estudasse em voz alta e conversasse sobre Física ou qualquer outra disciplina com a prima. O garoto obedeceu, mas as portas já estavam abertas e Marina entraria por elas sem hesitação. Freqüentou as bibliotecas e leu livros de história, geografia, química e saúde pública. Aos dez anos podia citar todas as propriedades farmacológicas das plantas do jardim, sabia recitar trechos da obra de Dante no original e tomava diariamente chá mate ( que prefiria chamar de Ilex paraguariensis) para comprovar-lhe os benefícios que uma revista médica lhe atribuiu. Douglas foi banido da casa. Voltou a morar com seus pais em uma cidade distante o suficiente para não influenciar a pequena Marina. Mas a menina há muito já não precisava das aulas do primo, embora sentisse falta de ter alguém com quem conversar sobre o que aprendia.

Na solidão envolta em curiosidade, quase explodiu a casa tentando entender as propriedades do álcool. Seus pais tentaram novamente a psicóloga, mas novamente tudo foi em vão. Marina tinha então 13 anos, poucos amigos e uma biblioteca montada com seu próprio esforço onde se podia encontrar desde A Retórica até manuais de Química Orgânica. Aos 16 anos, Marina escreveu seu primeiro livro, intitulado “Poço de perguntas”, no qual tentava teorizar acerca dos buracos negros. A essa altura, seus pais já haviam desistido de entendê-la e consultavam eles mesmos a psicóloga, tentando descobrir onde haviam errado.

Marina tinha ainda muitas perguntas: como a tensão superficial é tão forte que as patas finas dos mosquitos não furam a capa protetora da água? Como esses mesmos mosquitos conseguem desviar-se dos pingos ao voarem na chuva? Por que depois de sucessivas divisões a célula pára de se refazer e morre? Como Camões conseguiu escrever um poema tão grande? O que estaria Douglas fazendo a essas horas? Apenas para a última, Marina obteve resposta. Douglas havia entrado de férias da universidade onde estudava Física Nuclear. Veio visitar o ramo da família que o havia banido para o exílio dos livros, longe da prima querida. Também ele era enigmático e um poço de perguntas... Quando os primos se viram e reconheceram nos olhos de um a imagem do outro, todas as perguntas se embaralharam e apenas uma sobressaltou na mente de ambos: Por que seu coração batia descontroladamente? Mas pela primeira vez não procuraram respostas... tudo era exato e óbvio demais, embora inexplicável. Compartilharam então da descoberta inenarrável que fizeram, deram-se as mãos e desse dia em diante mergulharam juntos no mundo de idéias que os livros lhes proporcionavam.