segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ad infinitum

[Enviesando...]

Vinham de lados opostos na escada rolante. Ele, confuso em meio à multidão. Ela, distraída. Pareciam existir segundo regras próprias, num fluxo de estranheza que ressaltava suas particularidades. No encontro, não se viram. Não sabiam que se procuravam. Eugênio, numa olhada descuidada para trás, a viu. Ao longe. Não, não a ela, ao movimento no shopping. Através da lente dos óculos dela, reconhecia cores e paisagens que não via a olho desarmado. Quando a perdeu de vista, esteve, pela primeira vez, desnorteado.

No cinema, o quase reencontro: fileira da frente, poltrona à direita, leve inclinação de cabeça. E lá estavam lentes que tornavam nítidas algumas cenas do filme. É verdade que, vez por outra, misturavam as cores. No acender das luzes, Eugênio via, desmoldurado, o engano: não era a mesma a dona dos óculos. Bem que desconfiara de uma nitidez diferente...

[O veredito.]

- Por isso você tem tantas dores de cabeça. 
- Qual é o problema, doutor?
- Precisa de óculos, meu jovem. Você tem hipermetropia. Só vê bem as coisas que estão longe.
- hum...
- Sua visão é distorcida, o que você vê não corresponde à realidade. E o que merece atenção passa por você, despercebido. Até que esteja longe.

[[Pra que inventar um nome pra uma coisa que todo mundo tem? Só se vê bem de longe, é da condição humana...]]

- Veja, aqui está o seu globo ocular. Aqui é a retina. O normal é a imagem se formar neste ponto. No seu caso, ela só se forma aqui. Um míope tem todo esse efeito ao contrário, vê bem de perto e mal de longe.

[[É normal ter hipermetropia, doutor. Ou miopia. O que vale a pena ver sempre está perto demais - e é indistinguível- ou longe - e se torna inalcançável.]]

- E os óculos podem ajustar as coisas?
- Sim, o único incômodo são as molduras que a armação constrói. Mas com o tempo a pessoa se acostuma. Aqui está sua receita.


 [[Toda visão é emoldurada, doutor. Todos tentam desesperadamente corrigir as distorções...]]




[Armadilhas pós-armação:]

[[A vida é desconhecida e familiar ao mesmo tempo. Muitas cores, muita gente, muito barulho. Tudo assusta e acalenta. Emoldurar dá segurança e controle. Em outras palavras, ilude.]]







[Dejá vu:]

Vinham de lados opostos na escada rolante. Ele, confuso em meio à multidão. Ela, distraída. Pareciam existir segundo regras próprias, num fluxo de estranheza que ressaltava suas particularidades. No encontro, não se viram. Não sabiam que se procuravam. Ele, numa olhada descuidada para trás, a viu, ao longe. Não, não a ela, ao movimento no shopping. Através da lente dos óculos dela, reconhecia cores e paisagens que não via a olho recém-armado. Quando a perdeu de vista, Eugênio se sentiu, pela primeira vez, acalentado. A sobreposição de lentes não o assustava. A vertigem até que era atraente.





[Art noveau:]

Na saída, chuva fina. Eugênio, mãos nos bolsos, sorria ao caminhar entre as minúsculas lentes que lhe caíam sobre os óculos. Trazia nos olhos um brilho recém-desarmado.






sábado, 7 de abril de 2012

Entrecortados

E o mundo escurecia. De fora para dentro, numa imagem circular. Luzes brilhavam em tons de vermelho, no centro do círculo. Seus sentidos, todos embotados, não eram guias seguros, mas eram os que tinha. Tateando, encontrou um fio dourado - seria útil para guiar seus sentidos? - um fio em meio ao labirinto obscuro. Perdia a consciência, aos poucos, sem deixar de perceber e calcular o que ocorria: algo pensava em como chegar até a cama, após diagnosticar uma queda de pressão. As luzes vermelhas cediam espaço ao marrom aveludado de promessas descumpridas. Sua vida era recortes coloridos, que costuraria num colcha sobre a qual deitaria quando alcançasse a cama. Mãos a seguravam: três pessoas, seu tato lhe dizia. Já não havia luz alguma, som algum – exceto o da respiração ofegante que adivinhava ter. As mãos, invisivelmente, teciam a colcha, costuravam seus pedaços com fios roubados de Ariadne – era sua culpa o atordoamento de Teseu, e isso lhe dava prazer, o prazer das respostas. Mas os pés se moviam e algo continuava calculando: sim, era a direção da cama e ela tinha os retalhos ainda semicosturados. Os sonhos libertavam pedaços de vida vermelhos e amarelos. Acordada, tudo era em tons de azul-anil-violeta. A cama a alcançou. Ao contato, a colcha se desfez, novamente, em retalhos soltos, que só se deixariam costurar na antecâmara onde se espera a morte (ou talvez um sono menos profundo). Apneia, apneia a ajudaria a retomar a colcha, ainda via fiapos da linha solta dos retalhos invisíveis. Não, o soro estabilizara a pressão arterial, as luzes todas se acenderam, chamando-a novamente à vida. Sons voltavam a ofuscar sua anti-respiração. A apneia era impossível com os pulmões vivos, sugando o ar contra sua vontade. A colcha era só um amontoado de fios e trapos, não se podia juntá-los com as luzes acesas. Nada mais fazia sentido, as respostas que a costura invisível lhe dera foram todas apagadas com o (re)acender da vida. Buzinas, exclamações de alívio, risos, cada expressão lhe tirava um fio de entre os dedos. A cada vez que ouvia “Lena!”, de alguém aliviado com seu retorno, um ponto da costura se desfazia. Já afastada da possibilidade de óbito, olhava a morte nos olhos e pensava: então era isso? Morrer era só isso? Morreria com respostas coloridas costuradas magistralmente por suas mãos? Mas a morte, em resposta, com um sorriso malicioso, murmurava: viveria com os retalhos descontínuos e sem fio que os ligasse? Sim, Lena viveria. Quando cansasse da busca, seria hora de reutilizar seu fio dourado. Ao menos, já não temia o labirinto.

terça-feira, 20 de março de 2012

Inter Rogado

Então, os sentimentos mudavam de cor? Amarelavam? Empalideciam? Não, os sentimentos eram da mesma cor em cada espinha ou ruga. No entanto, em sua relação contextual, as cores podiam se embaralhar. Desbotar. Descolorir. Ou, envernizadas, durar por tempos maiores e supostas eternidades - que duram até acabar sua fama de infindáveis. As filosofias prosseguiam, perguntas e dúvidas eram lançadas e rebatidas num pingue-pongue mental. Só que - ela sabia -, no fundo, ninguém entendia. O mais próximo que já chegara disso foi a compreensão azulejante de alguém que a vida, num lampejo de lucidez e bondade, cismou em lhe apresentar, para mostrar que impossível é uma questão de prefixo. E por essa delicadeza da vida havia muito o que agradecer. Afinal, como pode isso: compreender o que nunca se sentiu? (Im)Possível? Doía-lhe nos ombros o peso, ou a leveza - quem sabe distinguir? -, da não-reciprocidade pelo gesto que a vida lhe fazia. Doía-lhe até que se encurvava, se arqueava, assumindo a postura de uma grande e imperceptível interrogação violeta a passar na rua entre estranhos. Mais lhe valeria falar espanhol e ser o sinal inquiridor que inaugura, de ponta-cabeça, os questionamentos. Mais lhe valeria se dissesse, num ímpeto de coragem e mesmo sem confiança: incompreensão é uma questão de prefixo...

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pequenez


Fome, sol no solo, vida escaldante. O livro tratava de uma grande seca em que retirantes nordestinos despiam-se de dignidade em busca apenas da sobrevivência nua. Já outro nordestino falava, ritmadamente, dessa vida severina, em que se morre de fome um pouco por dia. E em qualquer Nordeste desse mundo, fomes, sedes e desconfortos de outra ordem usam seus imperativos - muitas vezes disfarçados em apelativos não menos imperiosos - para atormentar os pequenos seres humanos. Os pequenos. Pois os grandes estão inalcançáveis, enlevados em flocos de algodão, em seda e púrpura, despensando (e dispensando), por falta de tempo, o que incomoda. São os pequenos, quiçá medíocres, que se aventuram pelo pensamento semi-livre, tendo o sentimento semi-preso; que arremessam a cara dos seus conceitos em todos os muros previamente construídos; que sofrem fome, sede e nudez. Passam necessidades impalpáveis: as de espírito. São os insignificantes seres pensantes que se encontram em plena chuva num dia frio, ensopados até o juízo e sem saber como chegaram até ali. Nem sabem quanto da umidade é chuva, quanto é lágrima ou suor.  E, dedicando-se mediocremente a seus pensamentos, incendeiam-se com mais do que podem suportar. “Por que em menino a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?” Porque em menino tudo é pequeno demais por fora, muita coisa é grande demais para caber dentro. Os insignificantes são sempre, latentemente, às vezes pateticamente, “em menino”. Querem ousar espaço, sabendo que seu espírito limitado e inelástico não simpatiza com ideias de alargamentos. Querem alçar voo, mesmo sabendo que no seu reduzido espaço interior não cabe um par de asas abertas. Mas continuam tentando. Forçam com os pés, os punhos e o topo da cabeça, as paredes quase inelásticas do espírito; choram e gemem de dor; param para respirar, ofegantes, e depois, como que esquecidos do esforço sobre-humano, recomeçam a luta. Não sabem se um dia as paredes se distraem ou cansam da resistência gratuita. Não têm nenhuma garantia que possam oferecer como prenda ou usar como cobertor para enganar a febre. Mas precisam, com um imperativo interior, continuar lutando contra a matéria inelástica. Porque sem isso, seriam apenas grandes. Grandes espaços vazios. Ocos. E sem eco.