sexta-feira, 22 de abril de 2011

A dança

Ao toque da música, punha os sentidos do avesso para captar o que havia ali. Casais e grupos se moviam, num ritmo às vezes harmônico, às vezes próprio, na pista de dança. Luísa tentava deixar-se conduzir por Afonso, mas seu ritmo era mais próprio que o dele. Diante das queixas impronunciadas, expressas com olhares e franzir de testa, propôs a Afonso que a deixasse conduzi-lo um pouco. Ele tentou recuar, explicou que era parte da natureza do homem guiar o corpo feminino que o abraçava, mas, acabou cedendo, e, a contragosto, deixou-se conduzir por meia dança. A música tocava ao mesmo tempo em seu íntimo e ela, absorta em pensamentos sentidos, deixou-se levar um pouco. Quando percebeu o que ocorrera, atrapalhou-se com as pernas e teve os pés pisados... Tudo bem, o erro foi dela que, não sabendo ser uma dama, também não sabia deixar de sê-lo. Afonso, curioso, não entendia os motivos. Era tão difícil assim simplesmente segurar-se ao corpo dele e deixar que a levasse, a girar, a girar, dois pra lá, dois pra cá, a mover devagar os pés, com a cabeça à altura do peito (onde até poderia encostar, se precisasse de apoio)? Luísa não sabia explicar que, por ter começado antes da maioria das mulheres a tomar decisões vitais, baseando-se no próprio critério, não se lembrava de confiar no critério alheio. Mesmo sem saber explicar, propôs um método: Afonso a conduziria, mas, antes, indicaria o caminho a ser percorrido. Ele concordou e dançaram assim 3 canções inteiras, até que o improviso, esse intruso irresistível, veio meter-se entre os dois e, com um empurrão, derrubou a harmonia. Luísa continuava a não saber explicar, mas sentia que algo lhe faltava, não conseguia se abandonar aos passos imprevisíveis de alguém. Aquilo era o precipício: seus pés travavam ante o desconhecido. Afonso, convencido de que aquilo equivalia a uma obstinação feminista, deixou de achar qualquer coisa possível e foi buscar uma bebida. Voltou com uma mulher de vestido vermelho e quadris bamboleantes, entregou a bebida a Luísa e apontou-lhe uma cadeira – menos vazia que ela – onde podia sentar-se, com suas dúvidas. Foi assim que Luísa decidiu, selando a decisão com uma lágrima espremida, que nunca mais tentaria dançar. Os dias se passaram e Afonso não telefonou, teria talvez anotado o telefone vermelho e bamboleante por cima do número semi-invisível de Luísa... Outra lágrima, menos espremida dessa vez, selou de vez a abolição da dança. Mesmo depois de anos, convencida de sua inaptidão para o baile, ela apenas sentava e olhava as pessoas nas festas – geralmente, casamentos (sempre alheios) – enquanto vaporizava com álcool os sentidos que a música virava ao avesso. Não fosse o álcool e não teria aceito o convite de Mauro, não teria segurado sua mão, não lhe teria oferecido a cintura, não teria chegado àquela proximidade que só com o consentimento da dama se deve dar. Não teria encostado a cabeça no peito dele. Não lhe teria molhado a camisa com duas lágrimas há anos reprimidas. Não saberia lhe falar que não podia dançar com ele por precisar sempre saber para onde a estavam levando, antes de dar seu consentimento. Há quanto tempo se conheciam? Ele não sabia quem ela era, não podia descobrir sua maior fraqueza tão rápido. Mas, Luísa já se tinha abandonado. Mauro apenas a recolhia do chão, com as mãos em concha, enquanto, com pés um tanto vacilantes, suava, tentando fingir passos de dança. “Não sei dançar” – confessou ao ouvido de Luísa. Ela, confiando-se pela primeira vez aos braços do homem que a envolvia, respondeu: “também não sei, mas já ouvi dizer que é simples, basta que você me abrace e me conduza”. “Para onde a devo conduzir?”. “Para onde quiser...”. Assim, no somatório de suas supostas incompetências, entregaram-se à coreografia que menos desfizesse aquele abraço...

terça-feira, 12 de abril de 2011

pensamentos soltos...

Preciso entender por quê... essa música me faz lembrar de mim. Certas horas deixam a luz com uma textura agradável. Gosto de viver essas horas. Em que pensava o rapaz que, no ônibus lotado, sorria para o ar? Queria ler pensamentos... Mas tenho medo das coisas que leria por aí. Vou caminhar mais rápido para encurtar o caminho. Os caminhos são sempre longos, e vivo tentando encurtá-los. Só sei andar por chão de terra batida... Belos olhos. Se eu pudesse os veria sempre. Mas a vida dobrou a esquina comigo. Como os mosquitos conseguem voar na chuva? Gosto do cheiro acre de terra molhada. Mas só se estiver bem molhada mesmo, senão fere meu olfato. A água é uma necessidade visual. Gosto de sentar em frente às águas... me acalma. Há quem me ache calma e tranqüila. Não sei se sou assim, mas em respeito a essas pessoas que vêem algo positivo em mim, tento não me exaltar. E às vezes exagero: deixo de me exaltar quando isso seria a própria salvação de minha sanidade. Não sei se sou muito sã. Sinto o gérmen da loucura a me habitar. E ele também salva. Da rotina medíocre. Odeio rotina... Tento quebrar, sempre. Calmamente, sem me exaltar. Quebro em frente às águas. E escolho a próxima lista de coisas a fazer. Sempre faço listas do que tenho de fazer, se houver mais de três coisas. Meu subconsciente só conta até três. Anoto minha vida em papéis avulsos. E nunca os jogo fora. Exceto em ocasiões especiais. Já houve uma ocasião assim: queimei vários papéis. Parte da minha vida foi queimada junto e me senti mais livre. Acho os passarinhos realmente livres. Podem voar e cantar, coisas que não sei fazer. A liberdade consiste em tudo o que não se pode fazer. Talvez alguém me ache livre, sem saber que me prendo muito, não ao chão, mas a coisas. E a pessoas. Algo sempre me leva para cima, para fora da realidade concreta. Agarro-me a tudo o que me permita voltar. Será que um dia não voltarei mais? Será isso a loucura? Ou apenas uma abstração de meus neurônios, brincando com as sinapses... Sensações me invadem o tempo todo e me fazem sentir fora de onde deveria estar. Como se não fosse um ser normal. Como se não pertencesse... Preciso pertencer. I need peace and love. Às vezes mais de peace, às vezes mais de love.  Construí um castelo no meu lado avesso e sou sua única habitante. Gostaria de me mudar para um lugar mais arejado. Fora de mim. Também sorrio nos ônibus lotados. Vejo passarinhos voando através da janela. Vejo mosquitos que conseguem voar na chuva. Sinto cheiro de terra molhada, bem molhada. Mas não está chovendo... A luz e as cores me fazem querer seguir. Ou querer parar. Há músicas tristes que me fazem lembrar do que me tornei. Há quem me ache normal. Há quem pense que deve ser fácil me ser. Mas não é. É bem difícil: pesado e desconfortavelmente úmido. É frio e escuro. A escuridão tem um lado bom: realça qualquer pequena luz. Ouço o vento, que também é música, também é triste e me faz lembrar de pessoas que amo. Amo o cheiro das pessoas... Mas não de todas. Cheiro de pele me faz sentir humana. Por isso me agrada. Hoje vi pessoas que me tocaram profundamente. Quase me transformei nelas. E em silêncio as compreendi. Nem sempre penso, às vezes só sinto. Aí compreendo. Sento depois para pensar no que senti. Ou não. Esqueço de pensar. Mas quando penso e sinto juntamente o mundo se abre. E eu nem sabia que tinha as chaves. As chaves úmidas que enterro na areia bem molhada pela chuva. Ouço o barulho da água me dizendo para procurá-las e abrir com elas o mundo e as portas do meu castelo escuro. Mas não chove... Sento então em frente às águas e ouço o vento. Compreendo sem pensar. Basta sentir.

sábado, 2 de abril de 2011

Ex-posição...

E não é que no meio do parque construíram uma galeria?! Exposição inaugural de Abelardo da Hora, com esculturas e desenhos, tudo grátis. A esse preço, Juscelino, que nunca fora a uma exposição, resolveu ver do que se tratava. Logo à entrada, a escultura “A Fome e o Brado” chamou a atenção do adolescente: estátuas de olhos arregalados e ossos visíveis, encostadas umas às outras, sem individualidade. Por trás do amontoado de gente e ossos, uma mão em robusto desespero, aberta em direção ao céu, q é para onde se brada à espera da saída para a fome. Fome de quê? Impossível não se emocionar com essa escultura. As fomes humanas se manifestam todas com a mesma intensidade, são todas retratáveis pela mesma imagem. Aparecem à frente de um brado em desespero, rumo a um céu de onde, às vezes, cai apenas chuva, perpetuando a fome... Juscelino se lembra de mostrar respeito: chuva, para quem mora à beira de um rio recifense, é a ameaça pingando sobre o mundo. Um detalhe impressiona o garoto: são os ossos expostos nas esculturas – costelas, metacarpos, mandíbulas salientes. Impressiona-se, mas não sabe por quê... Raciocina que esse, afinal, é o nosso lado de dentro – ossos. O que Juscelino ainda não sabe é que, por vezes, aquela alma ossuda – nosso legado em qualquer fome – insiste em se exibir, mostrando, no peito vazio, ossos; nas mãos sem sentido, ossos; no rosto deformado por choro ou insônia, cada vez mais ossos. Alma rota, alma amarrotada, com olhos fundos de desesperança: o pleno retrato da fome do mundo, da qual não escapa nem quem come seis vezes ao dia... Juscelino caminha pela exposição, seus olhos agora estão muito mais abertos do que quando entrou. Ao lado, outra escultura: “Desamparados”. Capturada a penúria humana: personagens cujas bocas escancaradas são buracos profundos de onde se adivinha um grito, buracos sem dentes – e para que haveria dentes, se aquelas bocas não comem nem riem? Juscelino sente a garganta apertada, mas não entende os motivos – ainda não aprendeu a fazer sentido. Resolve que escultura é uma arte incômoda e vai olhar os desenhos pendurados na parede da galeria. Mas sua sensibilidade já fora tocada, não havia como recuar. Nos esboços a lápis, retratos de uma penúria em que humanos e porcos se confundem. Num dos quadros, uma mocinha que o olhava, como se lhe perguntasse “e agora?”. Ele viu a data do quadro: 1962. Sua mãe tinha 12 anos naquela época e uma vida semelhante. Ou não? Na outra pintura, quem lhe aparecia era a figura da avó a carregar uma lata d’água na cabeça e duas crianças ao lado: ele e sua mãe. Com a cabeça tonta e os olhos úmidos, Juscelino saiu da galeria, ofegante: havia se visto, havia se reconhecido nas obras, havia tocado o desamparo da sua essência humana. Mas como, se nunca experimentara aquelas realidades? Antes de ter respostas, olhou pela porta de vidro e viu, a despeito da fome e do desespero ao redor, a escultura de um casal: seus corpos sentados um ao lado do outro, num abraço que os transformava em metades. Olhavam-se nos olhos e quem os olhava via a mesma face em ambos – espelho, fusão, amálgama.Completude, enfim? Talvez a fome humana seja melhor suportada a dois. Juscelino se lembrou de uma frase que ouvira na escola: é que só a antropofagia nos une... E, para aquela boca sem dentes que descobrira em si, esboçou, enfim, um sorriso completo.