segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Novo em folha

Enquanto a vida vai seguindo seu curso e as pegadas denunciam de onde viemos, o vento gira sobre as nossas cabeças, tentando ensinar a lição: em círculo? Não! Em espiral!

Em espiral que não volta nunca ao mesmo lugar, embora volteie circundando o mesmo perímetro.

Em espiral, que sobe ou desce, enquanto permanece no mesmo rumo.

Em espiral, que muda diante do imutável.

O vento ensina em vão, não queremos aprender nem ter por completo o aprendizado. Queremos lembrar, periodicamente – geralmente, quando a espiral toca de novo o mesmo ponto – nossa existência espiralada.

Lembrar que tempestade e brisa são feitos do mesmo vento...

Que a poeira que voa em direção aos nossos olhos, inevitavelmente lacrimejantes, é feita daquela areia onde enterramos nossos planos e sonhos.

A vida precisa seguir com o vento, seja vendaval ou brisa. E seguirá, como a folha que o vento leva para onde quer, em espiral.

É bom às vezes olhar para trás, é bom ver lá as pegadas denunciadoras de por onde andamos.

É bom que algumas pegadas se apaguem.

E que outras façam parte da poeira a encher de lágrimas nossos olhos.

Mas, acima de tudo, é bom saber que nunca repisaremos nenhuma delas: não andamos em círculos.

Andamos em espiral.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

recondesconstrução

Um segundo de tremor havia deixado rastros de destruição inimagináveis. A plasticidade das coisas (e das pessoas) não acompanha a do solo. Agora, sob os pés antes firmes, um grande buraco cujo fundo não se via. Acima, ela, presa entre blocos de concreto desarmado. Imóvel do peito para baixo. Só do lado de dentro, algo ainda se movia, ritmado. Tum, tum, tum - como uma percussão que não desiste. Como o eco, que não percebe o próprio atraso e se julga som legítimo.  E, por não saber que é só eco, torna-se a mais forte evidência de um som julgado extinto, capaz de um segundo tremor e de rastros de reconstrução incalculáveis.

domingo, 10 de julho de 2011

Reflexões de Julia Puebla

Meus caminhos têm curvas sinuosas para me lembrar de ter cuidado. Têm árvores de raízes douradas, soterradas até o meio do tronco, para me lembrar da busca necessária. Não ando sozinha, acompanham-se centenas de eus que vivem em tempos diferentes e jamais morrem totalmente. Não existe paisagem à minha frente, é tudo em branco, à espera do colorido que dou. Então, sigo colorindo. Mas, se paro, as tintas todas, por inércia, seguem seu trajeto e, sem mãos que as guiem, espalham cor para todos os lados.

Só me resta concluir que é necessário parar para renovar a criatividade. Mas devo lembrar que essas paradas devem ser curtas, do tamanho apenas de um suspiro, para não comprometer a memória de como se anda. Às vezes, um ou outro desses eus seguram mãos de um tu, às vezes as mãos não se deixam soltar, às vezes esbarram num perfume alheio ou em cores de não-eu. Tudo o que vem de fora é instantaneamente agarrado, como se fosse necessário fugir do que é meu. Ilusão – quero apenas acrescentar ao meu espectro de luz visível as luzes que antes não via. Surpreende-me, então, surpreende-me sempre com cores novas, com perfumes só teus, com o esboço de um rosto meu na tela da tua vida, surpreende-me e te seguirei sem medo, a todos os tus que tu és.

Suspende-me entre o húmus e a nuvem carregada, remove a terra e mostra-me cada uma das raízes: mostra-me uma a uma, pelo tempo de uma vida, de forma que, durante meu último segundo, ainda haja o que descobrir. Pois, até quando te respiro, me sou. Sigo um caminho-sem-setas-ou-placas que me leva invariavelmente a mim e de mim só pede que preste atenção à paisagem que vai ficando para trás.

Pois na paisagem se acham meus inúmeros retratos. E um deles é teu.

Aquele que acabou de cair.

domingo, 19 de junho de 2011

A Vontade de Blimunda

“Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o
tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas
dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem
para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o
de olhar, que esse pouco é o que fazem os que,
olhos tendo, são outra qualidade de cegos.”
(José Saramago – Memorial do Convento)


E agora, diante do perigo, pensava no que poderia suportar: vê-lo contra a luz das 16 horas, à beira-mar, abraçando outra.Ou apresentá-lo à estranha que o levaria de suas mãos. Ou até ser madrinha de seu casamento com aquelazinha que não suportava. Mas não aguentaria vê-lo pular do nono andar. A morte era a única que ela não admitia ver de mãos dadas com ele. Agora, vendo as cores do perigo à sua frente, como sibila num mundo surdo às profecias, sofria com a descrença alheia. Ninguém evitaria o salto mortal, prestes a ser dado. Ninguém sequer notaria que ali havia um prédio de 9 andares de onde um garoto, mimado e desiludido, pretendia pular. Ela entendia os motivos ocultos. E mentalmente o perdoava, embora jamais pudesse desculpá-lo. Não era justo que fosse obrigada a olhar a ausência de cores de sua ausência. Não havia prédio algum no terreno para o qual ela olhava, mas era ali que, em frações de segundo, tudo aconteceria: edifício, varanda, ar. Na calçada, ficariam apenas as marcar de giz dos peritos e uns poucos fios da barba que o garoto teria um dia. Sabia ver as pessoas por dentro, com suas nuvens de vontades a exararem-se pelos poros. Era verdade o que diziam, que, se juntasse alguns milhares daquelas vontades voláteis, teria chance de alçar vôo? Poderia prendê-las a um balão e salvar o garoto do salto. Mas não havia tempo e, como via em cada vez mais pessoas, as vontades evaporavam em alta velocidade, substituídas pela próxima novidade. Desejava que a vontade do rapaz evaporasse, que ele desistisse de jogar tudo pelos ares apenas para sentir o vento de uma liberdade traiçoeira. Mas nem toda vontade de Blimunda era suficiente para fazê-lo casar-se com a estranha ou abraçar uma bela silhueta à beira-mar, às 16 horas. Não havia meio de mudar as vontades, como não havia de recolhê-las no seu balão. E não havia tempo: como uma bala, o corpo dele jorrou do prédio inexistente e atravessou o ar, sibilando. Lá estavam as marcas de giz. Blimunda sentiu um incômodo nos olhos: eram uns fios de barba que vieram com o vento. E que para lá voltaram, auxiliados por duas lágrimas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A dança

Ao toque da música, punha os sentidos do avesso para captar o que havia ali. Casais e grupos se moviam, num ritmo às vezes harmônico, às vezes próprio, na pista de dança. Luísa tentava deixar-se conduzir por Afonso, mas seu ritmo era mais próprio que o dele. Diante das queixas impronunciadas, expressas com olhares e franzir de testa, propôs a Afonso que a deixasse conduzi-lo um pouco. Ele tentou recuar, explicou que era parte da natureza do homem guiar o corpo feminino que o abraçava, mas, acabou cedendo, e, a contragosto, deixou-se conduzir por meia dança. A música tocava ao mesmo tempo em seu íntimo e ela, absorta em pensamentos sentidos, deixou-se levar um pouco. Quando percebeu o que ocorrera, atrapalhou-se com as pernas e teve os pés pisados... Tudo bem, o erro foi dela que, não sabendo ser uma dama, também não sabia deixar de sê-lo. Afonso, curioso, não entendia os motivos. Era tão difícil assim simplesmente segurar-se ao corpo dele e deixar que a levasse, a girar, a girar, dois pra lá, dois pra cá, a mover devagar os pés, com a cabeça à altura do peito (onde até poderia encostar, se precisasse de apoio)? Luísa não sabia explicar que, por ter começado antes da maioria das mulheres a tomar decisões vitais, baseando-se no próprio critério, não se lembrava de confiar no critério alheio. Mesmo sem saber explicar, propôs um método: Afonso a conduziria, mas, antes, indicaria o caminho a ser percorrido. Ele concordou e dançaram assim 3 canções inteiras, até que o improviso, esse intruso irresistível, veio meter-se entre os dois e, com um empurrão, derrubou a harmonia. Luísa continuava a não saber explicar, mas sentia que algo lhe faltava, não conseguia se abandonar aos passos imprevisíveis de alguém. Aquilo era o precipício: seus pés travavam ante o desconhecido. Afonso, convencido de que aquilo equivalia a uma obstinação feminista, deixou de achar qualquer coisa possível e foi buscar uma bebida. Voltou com uma mulher de vestido vermelho e quadris bamboleantes, entregou a bebida a Luísa e apontou-lhe uma cadeira – menos vazia que ela – onde podia sentar-se, com suas dúvidas. Foi assim que Luísa decidiu, selando a decisão com uma lágrima espremida, que nunca mais tentaria dançar. Os dias se passaram e Afonso não telefonou, teria talvez anotado o telefone vermelho e bamboleante por cima do número semi-invisível de Luísa... Outra lágrima, menos espremida dessa vez, selou de vez a abolição da dança. Mesmo depois de anos, convencida de sua inaptidão para o baile, ela apenas sentava e olhava as pessoas nas festas – geralmente, casamentos (sempre alheios) – enquanto vaporizava com álcool os sentidos que a música virava ao avesso. Não fosse o álcool e não teria aceito o convite de Mauro, não teria segurado sua mão, não lhe teria oferecido a cintura, não teria chegado àquela proximidade que só com o consentimento da dama se deve dar. Não teria encostado a cabeça no peito dele. Não lhe teria molhado a camisa com duas lágrimas há anos reprimidas. Não saberia lhe falar que não podia dançar com ele por precisar sempre saber para onde a estavam levando, antes de dar seu consentimento. Há quanto tempo se conheciam? Ele não sabia quem ela era, não podia descobrir sua maior fraqueza tão rápido. Mas, Luísa já se tinha abandonado. Mauro apenas a recolhia do chão, com as mãos em concha, enquanto, com pés um tanto vacilantes, suava, tentando fingir passos de dança. “Não sei dançar” – confessou ao ouvido de Luísa. Ela, confiando-se pela primeira vez aos braços do homem que a envolvia, respondeu: “também não sei, mas já ouvi dizer que é simples, basta que você me abrace e me conduza”. “Para onde a devo conduzir?”. “Para onde quiser...”. Assim, no somatório de suas supostas incompetências, entregaram-se à coreografia que menos desfizesse aquele abraço...

terça-feira, 12 de abril de 2011

pensamentos soltos...

Preciso entender por quê... essa música me faz lembrar de mim. Certas horas deixam a luz com uma textura agradável. Gosto de viver essas horas. Em que pensava o rapaz que, no ônibus lotado, sorria para o ar? Queria ler pensamentos... Mas tenho medo das coisas que leria por aí. Vou caminhar mais rápido para encurtar o caminho. Os caminhos são sempre longos, e vivo tentando encurtá-los. Só sei andar por chão de terra batida... Belos olhos. Se eu pudesse os veria sempre. Mas a vida dobrou a esquina comigo. Como os mosquitos conseguem voar na chuva? Gosto do cheiro acre de terra molhada. Mas só se estiver bem molhada mesmo, senão fere meu olfato. A água é uma necessidade visual. Gosto de sentar em frente às águas... me acalma. Há quem me ache calma e tranqüila. Não sei se sou assim, mas em respeito a essas pessoas que vêem algo positivo em mim, tento não me exaltar. E às vezes exagero: deixo de me exaltar quando isso seria a própria salvação de minha sanidade. Não sei se sou muito sã. Sinto o gérmen da loucura a me habitar. E ele também salva. Da rotina medíocre. Odeio rotina... Tento quebrar, sempre. Calmamente, sem me exaltar. Quebro em frente às águas. E escolho a próxima lista de coisas a fazer. Sempre faço listas do que tenho de fazer, se houver mais de três coisas. Meu subconsciente só conta até três. Anoto minha vida em papéis avulsos. E nunca os jogo fora. Exceto em ocasiões especiais. Já houve uma ocasião assim: queimei vários papéis. Parte da minha vida foi queimada junto e me senti mais livre. Acho os passarinhos realmente livres. Podem voar e cantar, coisas que não sei fazer. A liberdade consiste em tudo o que não se pode fazer. Talvez alguém me ache livre, sem saber que me prendo muito, não ao chão, mas a coisas. E a pessoas. Algo sempre me leva para cima, para fora da realidade concreta. Agarro-me a tudo o que me permita voltar. Será que um dia não voltarei mais? Será isso a loucura? Ou apenas uma abstração de meus neurônios, brincando com as sinapses... Sensações me invadem o tempo todo e me fazem sentir fora de onde deveria estar. Como se não fosse um ser normal. Como se não pertencesse... Preciso pertencer. I need peace and love. Às vezes mais de peace, às vezes mais de love.  Construí um castelo no meu lado avesso e sou sua única habitante. Gostaria de me mudar para um lugar mais arejado. Fora de mim. Também sorrio nos ônibus lotados. Vejo passarinhos voando através da janela. Vejo mosquitos que conseguem voar na chuva. Sinto cheiro de terra molhada, bem molhada. Mas não está chovendo... A luz e as cores me fazem querer seguir. Ou querer parar. Há músicas tristes que me fazem lembrar do que me tornei. Há quem me ache normal. Há quem pense que deve ser fácil me ser. Mas não é. É bem difícil: pesado e desconfortavelmente úmido. É frio e escuro. A escuridão tem um lado bom: realça qualquer pequena luz. Ouço o vento, que também é música, também é triste e me faz lembrar de pessoas que amo. Amo o cheiro das pessoas... Mas não de todas. Cheiro de pele me faz sentir humana. Por isso me agrada. Hoje vi pessoas que me tocaram profundamente. Quase me transformei nelas. E em silêncio as compreendi. Nem sempre penso, às vezes só sinto. Aí compreendo. Sento depois para pensar no que senti. Ou não. Esqueço de pensar. Mas quando penso e sinto juntamente o mundo se abre. E eu nem sabia que tinha as chaves. As chaves úmidas que enterro na areia bem molhada pela chuva. Ouço o barulho da água me dizendo para procurá-las e abrir com elas o mundo e as portas do meu castelo escuro. Mas não chove... Sento então em frente às águas e ouço o vento. Compreendo sem pensar. Basta sentir.

sábado, 2 de abril de 2011

Ex-posição...

E não é que no meio do parque construíram uma galeria?! Exposição inaugural de Abelardo da Hora, com esculturas e desenhos, tudo grátis. A esse preço, Juscelino, que nunca fora a uma exposição, resolveu ver do que se tratava. Logo à entrada, a escultura “A Fome e o Brado” chamou a atenção do adolescente: estátuas de olhos arregalados e ossos visíveis, encostadas umas às outras, sem individualidade. Por trás do amontoado de gente e ossos, uma mão em robusto desespero, aberta em direção ao céu, q é para onde se brada à espera da saída para a fome. Fome de quê? Impossível não se emocionar com essa escultura. As fomes humanas se manifestam todas com a mesma intensidade, são todas retratáveis pela mesma imagem. Aparecem à frente de um brado em desespero, rumo a um céu de onde, às vezes, cai apenas chuva, perpetuando a fome... Juscelino se lembra de mostrar respeito: chuva, para quem mora à beira de um rio recifense, é a ameaça pingando sobre o mundo. Um detalhe impressiona o garoto: são os ossos expostos nas esculturas – costelas, metacarpos, mandíbulas salientes. Impressiona-se, mas não sabe por quê... Raciocina que esse, afinal, é o nosso lado de dentro – ossos. O que Juscelino ainda não sabe é que, por vezes, aquela alma ossuda – nosso legado em qualquer fome – insiste em se exibir, mostrando, no peito vazio, ossos; nas mãos sem sentido, ossos; no rosto deformado por choro ou insônia, cada vez mais ossos. Alma rota, alma amarrotada, com olhos fundos de desesperança: o pleno retrato da fome do mundo, da qual não escapa nem quem come seis vezes ao dia... Juscelino caminha pela exposição, seus olhos agora estão muito mais abertos do que quando entrou. Ao lado, outra escultura: “Desamparados”. Capturada a penúria humana: personagens cujas bocas escancaradas são buracos profundos de onde se adivinha um grito, buracos sem dentes – e para que haveria dentes, se aquelas bocas não comem nem riem? Juscelino sente a garganta apertada, mas não entende os motivos – ainda não aprendeu a fazer sentido. Resolve que escultura é uma arte incômoda e vai olhar os desenhos pendurados na parede da galeria. Mas sua sensibilidade já fora tocada, não havia como recuar. Nos esboços a lápis, retratos de uma penúria em que humanos e porcos se confundem. Num dos quadros, uma mocinha que o olhava, como se lhe perguntasse “e agora?”. Ele viu a data do quadro: 1962. Sua mãe tinha 12 anos naquela época e uma vida semelhante. Ou não? Na outra pintura, quem lhe aparecia era a figura da avó a carregar uma lata d’água na cabeça e duas crianças ao lado: ele e sua mãe. Com a cabeça tonta e os olhos úmidos, Juscelino saiu da galeria, ofegante: havia se visto, havia se reconhecido nas obras, havia tocado o desamparo da sua essência humana. Mas como, se nunca experimentara aquelas realidades? Antes de ter respostas, olhou pela porta de vidro e viu, a despeito da fome e do desespero ao redor, a escultura de um casal: seus corpos sentados um ao lado do outro, num abraço que os transformava em metades. Olhavam-se nos olhos e quem os olhava via a mesma face em ambos – espelho, fusão, amálgama.Completude, enfim? Talvez a fome humana seja melhor suportada a dois. Juscelino se lembrou de uma frase que ouvira na escola: é que só a antropofagia nos une... E, para aquela boca sem dentes que descobrira em si, esboçou, enfim, um sorriso completo.

                                                                      

sábado, 26 de março de 2011

Morro-do-Pico

“Não sei quem me lê: tive a necessidade de escrever esta carta e enviá-la a um destinatário qualquer – que selecionei, sem critério algum, na lista telefônica – para tratar de um assunto de extrema importância, uma descoberta que fiz hoje. Em visita a um arquipélago na costa nordeste do Brasil, deparei-me com o Morro-do-Pico e tive de fotografar com palavras a grande metáfora de terra e pedra que se erguia em minha frente. Prezado alguém que me lê, saiba que este é um assunto urgente, que só pode ser compreendido por quem vive e apalpa o ar ao redor de si, tentando entender. Portanto, se você não é desses, coloque a carta em outro envelope, copie um endereço qualquer no verso e a ponha no correio. Mas se você quer entender, mesmo que não saiba o quê, guarde este mistério: no Morro-do-Pico, de cada ângulo que se olha, de cada ponto onde alguém se posta, o morro muda, torna-se irreconhecível, suas cores se transgridem e se mesclam. E cada vento que sopra carrega em si cores novas que despeja sem piedade sobre a montanha. Para entender bem a vida, é preciso uma volta pelo Morro-do-Pico. Porque a vida é um morro como aquele. A cada vento, a cada passo, a cada escolha, a paisagem muda. Por isso, não importa quem você seja, não importa onde more, o que faz da vida nem quem tem ao seu lado – só importa para onde você olha de cima do Morro-do-Pico. É tudo uma questão de onde está e de para onde aponta o seu olhar. Como naquele dia em que alguém, em cuja testa tatuei “meu amor”, se foi (alegando sentimento desgastado) e eu fiquei (defendendo com palavras sangrentas meu orgulho em carne viva): os olhos dele a leste e os meus a oeste, mirando a mesma Praia-da-Vaidade. Ou como quando minha vida implodiu e só sobraram cacos espalhados: meu olhar apontado para o sul, vendo a Baía-da-Desesperança. Ou ainda como o dia, o amanhã de antigas feridas, em que alguém me sorriu com amor novamente: eu olhando em direção ao norte, testemunhando o Cabo-do-Eterno-Retorno. Ou quando frequentemente renovo minhas esperanças no mundo, na vida e na humanidade – incluindo, em grande parte, a mim mesma: meu olhar apontado para o cume do Morro-do-Pico-da-Vida. Para se guiar nesse morro, não é preciso mapa ou bússola – basta aprender a virar a cabeça com o vento e olhar em todas as direções... E agora que o vento lhe trouxe o segredo do Morro-do-Pico, mova a cabeça e escolha para onde vai apontar seu olhar. Mas lembre-se: a cada vento, a paisagem continuará a mudar... Então, sem desespero, mude também o foco.”