quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Desenho a lápis

A sede a consumia. Lembrou-se de que não havia bebido água durante o dia inteiro. Olhou as nuvens e sentiu que elas podiam tornar-se chuva e matar-lhe a sede. Na verdade, havia apenas uma nuvem, distante e pequena: ela pensou ver desenhado ali o rosto de Matias. Agora a nuvem deveria ter-se tornado chuva, deveria ter-lhe aplacado uma sede mais antiga... Esqueceu-se do incômodo que a garganta seca pronunciava e pôs-se a pensar em Matias: havia sonhado com ele na noite passada. No sonho ele estava muito mais próximo do que a nuvem, ela podia sentir-lhe o hálito enquanto falava, olhos fixos nos seus, com um brilho estranho. Ele fez o improvável: pediu-lhe que reconsiderasse. Ela estacou, espantada. Nunca pensou que ele lhe falaria aquilo, tinha certeza de que não diria jamais nenhuma daquelas palavras, com o hálito a lhe perturbar os sentidos, cobrando-lhe um beijo que ela já quis muito dar. No entanto, lá estava ele. Ela recompôs-se e, molhadamente, disse-lhe que não. O que sentia era como a marca de um desenho a lápis, apagado pelo tempo e pelo atrito das palavras. As marcas denunciavam os contornos de um desenho belo, porém inexistente. Aliás, esta foi a palavra-chave que lhe disse: o que sentia era agora apenas um contorno. Era uma moldura sem pintura nem fotografia. Não servia para pendurar na parede, não servia para ser contemplada, abrigava apenas vácuo. Matias entendeu, afastou o hálito, apagou o brilho dos olhos e ela acordou. Ainda bem que sonhara, não teria então de explicar o contorno, o desenho a lápis, a borracha do tempo e das palavras. Melhor assim.

Pensava em como se sentia às vezes em relação a ele, pelo simples acaso de encontrá-lo por aí: uma raiva súbita, uma mágoa, a corroía. Mas ele lhe apontava um sorriso e a mágoa deixava de ter razão. Houve tempo em que não lhe sorria, e ela se sentia culpada: sabia ser a causa de um sofrimento evitável, sabia tê-lo magoado. Ao mesmo tempo, indignava-se, pois também estava magoada por toda aquela indiferença. Essa atmosfera tensa durou umas semanas e, enfim, cedeu lugar ao perdão – embora ela não acreditasse que o perdão seria sinônimo de desculpa. Mas foi: numa atmosfera amarela-sabática, voltaram a ser amigos-desde-sempre. Agora os sorrisos voltavam ao rosto de Matias, apontados para ela. Como sentir-se irada diante disso? Lembrou-se de que o sorriso foi uma das primeiras coisas que notara nele. Um dia, enquanto conversavam, ele sorriu sem querer sorrir: esticou levemente os lábios, deixando os dentes escondidos, como quem prende um riso. E foi a primeira vez em que ela o olhou como uma mulher olha um homem. Depois disso, já estavam perdidas as rédeas: ela cavalgava, sem estribo ou sela, um cavalo selvagem.

Agora fitava a nuvem cada vez mais distante. Já não via o rosto de Matias: em seu lugar havia apenas uma mão aberta a lhe fazer um aceno de despedida. Voltou a sentir o incômodo da garganta seca, reclamando a chuva que a nuvem levava para longe, numa mão agora fechada, como se escondesse dentro de si toda a água do mundo. Comprou uma garrafa de água mineral, sentiu o líquido gelado percorrer-lhe garganta, esôfago, estômago e sentiu que só aquilo lhe ficara de palpável. Os contornos guardavam o invisível, as sensações. Por isso era difícil livrar-se deles. Havia múltiplas sensações coloridas, pintadas docemente de lembranças, que a consolavam do adeus da nuvem. E havia a sede, palpável, concreta, loquaz. Afogou-se na água mineral de uma garrafa, no meio de uma rua larga, em pleno meio-dia. O calor da garganta projetou-se no asfalto e lhe subiu numa baforada quente que levou a nuvem para o horizonte, depositando-a sobre o invisível. Sede, nuvem e água se foram. Apenas as molduras continuavam: continuariam enquanto houvesse as lembranças e sensações coloridas. Estavam fixas a uma parede branca, para a qual olhava somente quando queria. Um dia, se desintegrariam e, como poeira fina, seriam levadas pelos ventos. Os mesmos ventos que levaram a nuvem seca.

sábado, 17 de outubro de 2009

Epitáfio


Carmem acabara de chegar do cemitério. Entrou no apartamento vazio, com seu cheiro em cada cômodo, e sentou-se defronte a uma janela aberta. Lá fora a chuva caía, fina e constante. Cá dentro, só o seu perfume e as lembranças de outros cheiros e outras datas. Lembrou de como eram bons os dias frios de chuva, quando admirava as nuvens com Mário. Sentavam-se por horas, conversavam, renovavam as juras com olhares de amor. Agora, a casa estava vazia, Mário havia ficado no cemitério, sob a chuva, sem céu nem nuvem, nem olhar algum. Já havia dois anos. Carmem foi até a sepultura do marido sem saber por quê. Não pensara em nada, não falara, apenas precisou de alguma coisa que não conhecia. Onde estava o perfume de Mário? Nenhum vão do apartamento havia guardado seu cheiro, nada restara a não ser as lembranças. E de repente, Carmem compreendeu: tinha ido ao cemitério procurar o cheiro que lhe embalara a vida. Uma lágrima escorreu-lhe pela face, denunciando que a viagem foi inútil.
Lá fora a chuva caía mais forte e pesada, contrastando com a lágrima suave de Carmem. Mas, a suavidade enganava. Era um fim de tarde intenso, de dor intensa, de latejar intenso. Saudade... e outra lágrima rolou, seguida por outras... Lembrou-se de quando se conheceram, do tempo de namoro (tantos anos depois, ele ainda a apresentava aos outros como “minha namorada”). Pensou depois no casamento, quis ver as fotos, foi buscar o álbum. Sentada no mesmo lugar, virava lentamente uma página, depois outra, e sobre cada uma pousava os olhos úmidos e sorria tristemente de lembranças. Não foi um casamento tradicional. Um dia, de manhã bem cedo, Mário apareceu na casa, dizendo que precisava urgentemente falar com Carmem. Ela abriu, assustada, temendo que algum problema tivesse acontecido. Mário, mal entrou, foi logo mostrando o anel e fazendo o pedido. Os pais consentiram, meio adormecidos ainda, e o casamento foi marcado. Porém, nada de vestido, terno, bolo, buquê. Mário era muito espirituoso: propôs um casamento civil, sem pompa, seguido por uma lua de mel em turnê pela Europa. “Quando a gente voltar, se faz um bolinho, se convidam uns amigos. Fazemos o convite assim: ‘Casamos. Deu tudo certo. Convidamos você a compartilhar da nossa alegria’” – Mário disse, em tom de brincadeira. E assim se deu. Todos protestaram, menos Carmem, e como era ela a única com poder de veto, fizeram do jeito que Mário propôs. Carmem sorriu ao relembrar essa travessura.
Ultimamente, Mário sentia constantes dores no peito. Foi a vários médicos, fez exames detalhados. O parecer do médico: coração frágil. A resposta de Mário: como pode ser, se tenho a mais linda namorada? O médico riu e lhe receitou repouso, remédios e exames periódicos. Carmem cuidava de tudo, os horários, a alimentação, o carinho. Neste passo se passaram 10 anos. E a fragilidade do coração cobrou um tributo pesado. Mário foi internado. A cada novo médico que se apresentava para o plantão, dizia: doutor, esta é minha namorada. E apontava para Carmem. Ela estava sempre ali. Lembrou-se do dia em que ele lhe disse: Carmem, meu coração vive da sua presença. Foi neste dia que ele saiu do hospital, mas não para casa... Ele tinha 87 anos, dos quais ela compartilhou 60.
Carmem tinha cada vez mais saudade do perfume de Mário, cheiro de sua presença amável. Então, com surpresa, um sorriso iluminou seu rosto: lembrava-se de ter restado um pouco desse perfume, guardado no armário. Sim, lá estava o frasco. Borrifou toda a casa, borrifou seu corpo, embriagou-se daquele cheiro antigo. Dois dias depois, foi encontrada na cadeira, em frente à janela, abraçada a um frasco de perfume e com um sorriso pétreo estampado no rosto. Deitaram-na numa sepultura ao lado da do marido. E não houve nada especial no epitáfio. No outro dia, os jornais noticiaram: “Velhinha bebe perfume e é encontrada morta!” De onde tiraram a idéia de que Carmem bebeu perfume? Não achavam outra explicação para o frasco encontrado em suas mãos, vazio. Mas então não se podia supor que houvesse amor? E que este tivesse seu próprio aroma? Agora, os perfumes só eram vendidos a velhinhos que provassem que não iam ingeri-los. Pobre humanidade...
No epitáfio de Carmem, escreveu-se apenas: “Aqui jaz Carmem Rocha Cruz, esposa de José Mário Cruz. 1930 - 2010” Nenhuma referência ao amor que os unia, ou aos aromas da chuva, ou aos olhares que trocaram. Nenhuma referência à vida que tiveram. Só a morte os unia agora. E, afinal, para que serve a poesia? O que mesmo é poesia? Em seu túmulo, ambos tinham terra molhada sobre o olfato inerte e, da posição em que estavam, fitariam noutros tempos estrelas, agora invisíveis. Mas, conservavam-se deitados lado a lado, indiferentes à insipidez do mundo. E, lentamente, sobre suas lápides, foram crescendo os ramos verdes de dois lírios brancos. Ah, alguém enfim havia permitido a poesia...

Entre o verde e o azul...

O garoto subiu no ônibus para pedir esmolas. Até aí, nenhuma novidade, os habitantes de nosso século veem, com frequência até demasiada, cenas como essa. Mas o que aconteceu a este garoto, só eu vi. Tão pequeno ele era, que nem conseguia pronunciar com clareza as palavras decoradas, que alguém lhe ensinou. Pedia mais fluentemente através dos olhos verdes que da boca gaga. Na mão, carregava uma bola, dessas de festa, com uma estampa impressa. Era seu brinquedo. Não sei como arranjou aquela bola, azul com estampa colorida, bonita e bem cheia. Enquanto pedia, tentava guardá-la numa sacola plástica. Foi então que ocorreu a fatalidade: algo na sacola fez com que a bola estourasse... O estrondo assustou o garoto, mas ele não derramou nenhuma lágrima. Apenas continuou pedindo, agora com seus olhos muito mais verdes. Olhei o menino, imaginei o que seria dele daqui a dez ou quinze anos... Sua voz gaga fazia um eco em mim – tão grande que meu coração de vidro entrou em ressonância e se partiu. Quantas vezes carregamos com cuidado nossos sonhos – azuis, festivos, bonitos – tentando protegê-los. E quantas vezes assistimos impotentes a sua destruição completa, enquanto pedimos, com o mar nos olhos, as esmolas de compreensão daqueles que existem a nosso redor. Talvez daqui a dez anos o garoto consiga chorar... Talvez um dia esvazie o verde de seus olhos... Até lá, a humanidade continuará tentando proteger seus sonhos e inundando as ruas com olhos que se secam e mudam de cor. Talvez daqui a dez anos, o garoto e eu consigamos perder o verde do nosso olhar mendigo. Mas receio que eu me afogue no mar que se formará...