sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

factus putrefactus temporis

Vou contar uma história como a maioria das histórias – com começo, meio e fim. O que essa história não tem é sentido. A não ser que você veja sentido em um homem ser engolido por uma ostra negra ao andar na areia da praia. Ou em um homem ser abduzido por sua própria vontade a um planeta inexistente. Pois bem, começo a narrativa apresentando o cenário: uma rua deserta que desembocava em pleno nada. Não posso deixar de dizer que tudo aconteceu à meia-noite, em ponto. Um minuto antes era ainda sexta-feira. Um minuto após será já sábado. A meia-noite é aquele momento suspenso num limbo onde coisas insólitas, como esta história, podem ocorrer. Em meio a esta rua, havia um homem da cor da noite. Ele não sabia, mas a noite morava nele. Ali, confundidos homem e noite, via-se apenas um fio de sangue a escorrer pelo canto de uma boca que não se sabe mais a quem pertence. O homem dirige-se a uma pedra, colocada no meio da rua pelo orgulho de um animal ferido – não se deve estranhar esse fato, o orgulho ferido pode tudo, até uma pedra no meio da rua, da noite, do homem – e, sem aplicar mais força do que seria necessário para abrir uma porta, ele levanta a pedra (só a esta altura me lembro de dizer que a pedra era duas vezes maior que o homem) e posiciona-se, contraído, embaixo dela. A pedra acomoda-se novamente, como se pousasse sobre nada além de terra batida. O vento passa assoviando pela rua, chama o nome do homem. Silêncio... O sol bate na pedra, causa-lhe sombra, primeiro a leste, depois a oeste. E só há silêncio... Outros homens, iguais ao primeiro, diferentes apenas nas cores, verdes, azuis, vermelhos, amarelos, passam cantarolando o nome que aprenderam com o vento, mas a resposta é, como sempre, silêncio... Não. O homem não morreu. Não tornou-se pedra. Nem terra. Nem húmus. Séculos depois, o homem ergue a pedra, como se abrisse uma porta emperrada pelo tempo, e descobre que não há mais ninguém ali esperando o seu retorno. O vento ainda chama, mas, em um língua antiga, há muito desconhecida da humanidade. Na rua escura, o homem se confunde com a noite e dá-se conta de que está sozinho. O chamado é antigo, ele não sabe como responder. E não faz diferença, porque, neste momento, a noite engole o homem. Ninguém nota nada. Apenas o vento, assoviante, cantarola o nome antigo, obsoleto, inútil, que o orgulho de um animal ferido esmagou sob uma pedra, agora pulverizada pelo tempo.