sábado, 29 de agosto de 2009

(In)Digesto

Conta-se que, Eresictão, por desrespeito à deusa da saciedade, foi atormentado com uma maldição eterna: teria fome insaciável. Nada do que ele comesse poderia amenizar sua angústia, nada. Comeu todos os seus rebanhos, os frutos dos seus pomares, os restos do lixo alheio – e nada. A fome continuava a roer-lhe. Até que um dia, comeu a si próprio através da boca da fome.

Há os que devoram livros: procuram, como traças, alimento no papel. Palavras soltas ou amarradas, placas ou pontas de setas que apontem: AQUI! ALI! As placas parecem escritas em língua anterior a Babel: musicadas, ritmadas, convidam à dança e embalam o sono. Mas à menor brisa, as setas mudam a direção. É inútil vigiá-las, os ventos vem e vão ao sabor de correntes desconhecidas. E o jeito é dormir com fome.

Mas isso foi há muito tempo. Hoje, os homens não desrespeitam mais a deusa da saciedade: nem acreditam nela, embora ofereçam sacrifícios diários em seu altar. Não têm mais rebanhos, não plantam mais pomares, reciclam o lixo.

Há os que procuram drogas para aliviar a fome: cola de sapato, maconha, poesia, violinos, canto gregoriano, prancha de surf, sapateado. A fome se vai. Depois da música – volta; depois dos versos – volta; depois do delírio – volta. Com a última gota de suor ou lágrima – ela sempre volta.

Conta-se que uma mutação no cromossomo 15 causa a patologia chamada síndrome de Prader-Willi. O indivíduo acometido por ela sente fome insaciável. Come todos os seus rebanhos, os frutos dos seus pomares, os restos do lixo alheio – e nada. A fome continua a roer-lhe. Até que um dia, come a si próprio através da boca da fome.

Há os que inventam para si uma resposta à pergunta que nem conhecem, como uma criança faminta desenha um bolo. A criança come o papel pintado, digere o amargo pedaço de desenho. E segue, ruminando, com alguma coisa, muito além do estômago, vazia...

Mas isso é muito raro e requer uma grande dose de azar. Hoje se faz pesquisa genética, os cromossomos constam em todos nos mapas.

Só uma coisa rói o homem de hoje: uma fome que ele não sabe a que veio nem o que quer: a Grande Fome de Fogo. Não respeita nenhuma deusa, não faz sacrifícios em nenhum altar e não consta em nenhum mapa. É a condição humana e aparece perdida e pequenina como uma estrela, que quanto mais se aproxima do horizonte, mais freneticamente pisca...

sábado, 15 de agosto de 2009

Amar com os olhos

Multidão de rostos iguais... A humanidade inteira se parecia, eram cópias exatas uns dos outros até que despontaste em meio a ela. Meus olhos te viram e negaram-se a abdicar de tal visão. Procuraram-te ansiosos em intervalos cada vez menores, até que se fixaram em ti, imóveis. Carreguei tua imagem comigo a todos os lugares que visitei, coloquei teu rosto em todas as faces que olhei. Até o fatídico dia em que te vi sorrir pela última vez, e vi teus olhos a murmurarem “adeus”, e vi teus cabelos reclamarem um afago que meus dedos receosos evitaram dar, e vi tuas mãos acenarem em despedida, e vi teus lábios me negarem o beijo ansiado, e vi tuas cores desbotarem mais e mais, e depois nada mais vi, pois deixaste-me cega e que mais haveria para se ver? Vi um mundo cada vez mais despojado da tua presença. Vi-te entre flores que te machucariam com seus espinhos, pois não és delicado o suficiente para colher o que tem espinhos ( e por isso eu havia abdicado dos meus, para tornar mais fácil o colher da flor...). Entendi cada vez mais claramente que só serias feliz comigo... mas já não podia ver-te em meio à névoa... Nem imaginavas tu que ali haveria uma flor sem espinhos que poderias colher sem medo... Ou não desejarias o que te fosse dado tão fácil?