terça-feira, 8 de junho de 2010

Dia de Graça

Sofia já ia sair do shopping quando viu o rapaz nervoso. Ele também a viu e rapidamente pediu uma informação: onde fica o aeroporto? Sofia estranhou a pergunta, afinal, o aeroporto ficava a cerca de uma hora dali. Perguntou se o rapaz queria ir de ônibus ou de carro e explicou-lhe como estava longe. Mas, para sua surpresa, ele disse: eu vou a pé. Sofia sorriu, incrédula, a pé você não vai chegar lá, é muito longe. Mas ele insistiu, iria a pé. Havia sido assaltado assim que chegara, levaram sua carteira, seu relógio, todo o seu dinheiro e um sax, instrumento de trabalho. Ele mostrava o registro da ocorrência, feito numa delegacia. Sofia não entendia o que o rapaz estava fazendo ali, tão longe do aeroporto e da tal delegacia. Ele explicou: havia andado até ali. Durante três horas e meia, tinha vagado por Recife, pedindo ajuda a um e outro, pois não sabia de cor o endereço da única pessoa que conhecia na cidade – um amigo que o esperava para a visita, mas cujo endereço, anotado em um papel avulso, tinha ido embora na mesma bolsa que o sax... Ao contar o que acontecera, o rapaz tremia e chorava, mostrava os sapatos de couro novos, com as solas mais desgastadas do que mereciam, pela caminhada excessiva, e insistia em que Sofia visse o registro policial que o identificava. Falou que era músico e que precisava estar em Belo Horizonte até a noite ou perderia o emprego. Pediu a Sofia para fazer uma ligação para a companhia aérea em que viajaria. Mas Sofia não tinha crédito em seu celular... O rapaz parecia sufocado, como se carregasse um piano sobre os ombros. Sofia emprestou-lhe um cartão telefônico e o acompanhou a fazer a ligação. Ele remarcou a passagem, mas não sabia como chegar ao aeroporto sem dinheiro, nem como pagar a taxa de reembarque. Havia, nos olhos dele, a marca de um dia no inferno. Sofia pensou no bom samaritano, que deu o salário de dois dias para ajudar um estranho, sem esperar nada de volta. Calculou com ele todas as taxas, foi até o banco, sacou 120 reais e entregou ao rapaz, que chorava e agradecia efusivamente. Era uma mão que, de repente, o puxava do inferno pelos cabelos. O samaritano teve menos sorte, o judeu ferido sequer teve chance de lhe agradecer... O rapaz, chamado, afinal, Rogério, saxofonista, mineiro e visivelmente esgotado, anotou os dados bancários de Sofia e o número do seu celular, prometendo fazer a transferência do dinheiro o mais rápido possível. Despediram-se, ele aliviado por achar algo de bom na humanidade, ela surpresa com o gesto que teve. Uma luz brilhava no fim do túnel, a humanidade ainda vale a pena. Mas, no caminho, Rogério perdeu o papel onde anotou os dados de Sofia e não tinha outro meio de contatá-la ou de lhe restituir os 120 reais. Não sabia nada sobre ela. Quanto a Sofia, esperou três dias antes de concluir, consternada, que fora vítima de um novo golpe. Quis descrer da humanidade. Mas desistiu no caminho, ao pensar no que seria se não tivesse ajudado Rogério, em quem seria se não permitisse ao bem vir à tona de vez em quando. E, ainda amargurada, decidiu: havia doado menos do que o salário do samaritano, havia recebido mais, e acreditava num retorno, se não eterno, ao menos reincidente: se Rogério a enganara, receberia isso de volta, de um jeito ou de outro. Numa pausa do pensamento ruim, deu esmolas ao aleijado no ônibus...

A lua alumiará...


Sonhei que a lua estava muito, muito cheia. E eu a mostrava a alguns amigos, esperando deles uma reação emocionada como a que me tomava. Bem, eles... eles respondiam friamente que já a tinham visto, que estava de fato bonita, e voltavam aos seus pensamentos. Triste por não terem percebido a riqueza que eu lhes apresentara, continuei, sozinha, a admirar o meu tesouro. De repente, a lua enorme despencou na noite imensa! Sua queda se fez silenciosa e só meus olhos atentos a viram. O negrume mostrou a face, reinou absoluto. Exclamei para meus amigos que a lua havia caído do céu! E ouvi em resposta alguém me dizer que era impossível... Pelo visto, havia escuridão em mais algum lugar além da noite. Decidi, então, agir sozinha em meu benefício: corri e, num carro de mão, resgatei do chão uma lua cheia de luz. Mais uma vez, tentei mostrar a meus amigos que o impossível aconteceu, mas eles se recusaram a acreditar e nem olharam para o que eu trazia. Resignei-me por não ter comigo os amigos certos, e possuí toda só a minha lua... Pela primeira vez na vida, eu tinha o impossível nas mãos. E o fato de ninguém acreditar nisso, não tornava as coisas menos reais e importantes. Foi então que resolvi testar até onde o impossível me levaria se eu deixasse: descasquei com as mãos a capa brilhante da lua e o que passei a possuir foi uma bola de vácuo em meu carro de mão. Tornei-me então única no mundo e, feliz proprietária de uma porção enriquecedora de vácuo, acordei, ciente de que o impossível acontece...