segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Vida e Morte em 3D

Todo mundo tem um par de olhos voltados para fora, fixos nas realidades do dia a dia, e outro par voltado para dentro, comparando os fatos internos com os externos, tirando conclusões pelas sombras do que vê. É aí que reside uma das grandes diferenças entre Ciência e Arte: a Ciência busca o olhar do primeiro par, por isso repete experimentos e concretiza cálculos; a Arte quer ser vista pelos olhos de dentro e ter funções diferentes para cada golpe de vista. Enquanto numa todos os caminhos levam à mesma conclusão observável, na outra o único caminho se muliplica em bifurcações e encruzilhadas, consoante as circunstâncias de quem olha.

Sempre soube desses dois pares de olhos que o ser humano possui. O que eu não sabia era da existência de um terceiro par, que olha não para fora, nem para dentro, mas por sobre as coisas. Olhar analítico, profundamente científico, embora construído sobre a mais pura intuição. Foi com esse terceiro par de olhos que vi os olhos da morte brilhando em minha direção. Eu disse a ela que não viesse, ainda havia coisas que eu precisava fazer antes de morrer e ela não poderia me impedir. Mas a morte não parecia me ouvir, não era para mim que ela olhava, era para a mulher no leito ao lado. Demos-lhe nome: Rita de Fátima. Demos-lhe corpo: 40 anos, ventre avolumado pela infecção, olhos cerrados de dor. Demos-lhe cor: cinza-chumbo. Agora deixemos a morte dar-lhe a história. Essa não é uma história de terror, embora isso vá muito de acordo com as sensibilidades praticadas por quem lê. É de terror para os sensíveis, de horror para os volúveis, de carochinha para os incrédulos, de indiferença para os imortais.

Os olhos da morte brilhavam hipnoticamente - Rita não queria olhá-los, mas não conseguia evitar. Pediu ajuda a médicos e enfermeiros que não puderam, uns, e não quiseram, outros, desviar-lhe o olhar. A morte de Rita continuava lá, olhando-a fixamente nos olhos fechados. Levou um dia inteiro, completas 24 horas, até que lhe estendeu a mão. Era a mesma morte que olhou para mim com fixidez dois anos atrás. Por isso sei que Rita sentiu dor até o limite da dor, depois não sentiu mais nada, ouvia as vozes ao redor, via os vultos que as produziam, mal respirava e pensava em coisas agradáveis. As palavras de despedida entravam-lhe pela garganta, enquanto ela tentava devolvê-las a quem de direito, mas já era tarde. Aliás, era noite. Tudo escureceu, o sono apoderou-se de Rita e ela se sentiu embalada por mãos frias. Tudo pronto, é assim que se morre. No meu caso, vieram mãos de médica-mãe-humana-prestativa e abriram as mãos da morte com um bisturi. Meus sentidos voltaram todos. Rita não teve isso e as mãos frias a levaram embora. Eu vi, com meu terceiro par de olhos, a morte de Rita. Era aquela que não me levou. Era a que eu pude evitar. Mas, até quando?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Wordland

E quando tudo ia se tornar insuportável, quando sentiu que não agüentaria mais nem um minuto ali, pôs os fones no ouvido e escutou aquela música que a transportava a momentos felizes: "well, it’s always better when we’re together". Fechava os olhos e o nariz para relembrar o perfume alegre que aquele som trazia. E também porque o cheiro do quarto era horrível, definitivamente hospital não era o seu lugar. Sabia que o livro tinha muito a lhe dizer, sabia haver em suas mãos o suficiente de sensibilidade para entender as mensagens cifradas da literatura. Mas na escuridão do quarto não podia ler. Seus olhos doíam, denunciando o cansaço físico e mental. Denunciando também uma outra espécie de cansaço a qual ainda não havia rotulado. Não, não cobraria dos olhos o esforço de ler no escuro. Aproveitou um momento em que o homem no leito parecia ter adormecido e saiu do quarto. Ficou sentada na sala de espera, com um livro na mão, sob a luz fraca, tentando decifrá-lo com todos os seus poros. Mas o homem acordara e a presença dela era solicitada no quarto para... para quê? Ah, sim, claro, para sentar-se no escuro, com um livro fechado diante do olhar cego. Sentou-se e, para não desperdiçar as chaves que tinha em mãos, começou a pensar. Era algo que se podia fazer no escuro. Virada para dentro, recolhia palavras: seu lado interior era tudo, menos escuro. Havia lá luz bastante para iluminar-lhe os olhos. Sabia que todas as respostas existem e que podia alcançar cada uma delas. Estavam lá dentro, latejando, aguardando apenas que um dia a coragem a invada (ou o desespero, como é mais provável nos covardes) e arranque seus grilhões. Ninguém é tão forte que não possua seu calcanhar de Aquiles. Temia descobrir que é capaz; temia o peso da realização e, por fim, temia a própria coisa desejada. Contraditório? Logicamente. Pois tudo o que é vivo se contrai e se con-trai, se trai, se contradiz – e nisso tudo se constrói. Pensou: “o que é vivo se constrói aos trancos e barrancos”. Embora não saiba o que é um tranco nem um barranco. A mordaça que colocava em si existia apenas pelo medo de que a vissem antes que ela se tivesse visto. “Só existo onde não possa ser alcançada, como elétrons obedecendo a uma lei de incerteza e inacessibilidade. E isso dói, sangra, mutila”, disse-se em voz baixa. “Toda máscara se finca na pele com pregos enferrujados, toda máscara sangra a pele e o espírito.” Sempre se refugiava na ala de reclusão que carrega em seu íntimo, saindo de lá apenas quando necessário, como um ser das cavernas, sujo e com a barba na altura do peito. Teme que os outros não a reconheçam. Lembra-se de que não tem barba, mas ainda assim tem medo de que vejam a barba que não tem, apontem o dedo e digam: “ora, mas vejam como ela está diferente! Apenas a barba continua igual”. Foi então que percebeu: não podia parar! Escrever a salvava dos maus momentos da vida e não valia a pena abrir mão do ato salvador. Era preciso sentir. Deveria ser capaz de deixar a poeira voar. Por isso, num gesto iniciador, abriu as mãos, deixando escoar a terra sob a qual ocultara sua sensibilidade. Agora de mãos limpas, pegava a caneta no gesto salvador, mais uma vez. A primeira de uma nova série. A pergunta que sempre fazia – “por quê?” – vinha-lhe à mente modificada: “ E por que não?” Essa era a chave. Se conseguisse responder a essa pergunta, poderia argumentar. Mas, se não, restaria seguir seu curso, sem resistência. Seriam assim seus diálogos monologados a partir de agora:


- Por quê?

- Por medo, por dor, por opção pela insensibilidade.

- E por que não sentir? Por que não a emoção? Por que não o sonho?

Sonharia então. Sonharia com as palavras que poderia utilizar. Experimentaria a expressão, destemida. E com seu último pensamento haveria duas palavras, em qualquer idioma: ainda vivo. Mas sua boca pronunciaria apenas uma, em português, no derradeiro suspiro e destinada a um ouvido surdo: obrigada.