terça-feira, 9 de novembro de 2010

Bolha de sabão

            Não, não queria. Era só o que Joana pensava. Não queria, absolutamente. Sentia o peito pétreo, a alma intocável. Mas ao ouvir o trecho da poesia, a dureza dentro dela começou a se dissolver. A sensação trazia consigo imagem e textura: uma bolha de sabão. Linda, fina, efêmera ia a bolha, a levitar, arrastando consigo todas as filosofias que podem permear uma vida, arrastando-as e lançando-as no vazio. Uma bolha de sabão: apenas o contorno, uma moldura, em volta do ar. Joana não queria. A poesia transformara-a numa mistura heterogênea de sensações confusas. No entanto, não havia com que se preocupar, bastava um pouco de pressão e... logo a bolha estouraria: Joana continuaria a não querer. Foi então, atravessando como uma flecha este pensamento, que o celular tocou. Joana atendeu e reconheceu a voz de Raul: emoções heterogêneas a envolveram. Sua mente estava calma, sua voz estava calma, suas pernas estavam calmas. As mãos, porém, ficaram geladas. As mãos de Joana sempre pensavam demasiado devagar e demasiado alto. Eram indiscretas, expunham sua alma, como se quisessem ter nascido olhos. A bolha de sabão entalou-se-lhe na garganta e não havia meio de tirá-la de lá. Não adiantava tossir, pigarrear nem engolir qualquer alimento. Joana compreendeu que tudo isso era efeito da poesia, não se sentiria assim se Raul tivesse telefonado em outras circunstâncias, numa hora sem literatura. Que fazer, agora? Estava com a garganta obstruída por uma bolha de sabão indestrutível. Como dizer a alguém o que sentia? Como pedir ajuda? Que voz poderia transpor tamanho obstáculo?Nas línguas que conhecia, não havia uma palavra que exprimisse sua sensação, era um momento de mudez profunda. Raul estava perto do local onde Joana se encontrava. Ela sabia que o veria em alguns minutos. Suas mãos, sempre retardadas e indiscretas, congelavam. Todo o resto permanecia calmo. Joana tentou apressar-se e fugir, mas sabia ser impossível: encontraria Raul a qualquer momento, e não lhe falaria nada, pois tinha uma bolha de sabão atravessada na garganta. Raul chegou. As mãos geladas de Joana acenaram. Ao primeiro contato com a voz dele, a bolha estourou, deixando na língua um gosto amargo de sabão. Joana despediu-se e se foi, com fel na boca. Libertara-se e voltara a não querer. Não, não queria, absolutamente. No entanto, as mãos... ah, as mãos continuavam geladas.

5 comentários:

  1. Muito massa Lí!
    Beijos,
    MH

    ResponderExcluir
  2. Liliane, li seu conto sobre o saxofonista; será que você pode entrar em contato comigo?
    Meu blog: http://todaescrita.blogspot.com/
    Grata,
    Viviane

    ResponderExcluir
  3. Oi, Lili.

    Obrigada pelo elogio. Encontrei seu blog (que é muito bom, aliás) por acaso, por meio de uma pesquisa no Google a respeito do "personagem" do seu texto sobre o saxofonista. Por favor, entre em contato comigo. Vou deixar meu e-mail:
    viviane_tm@hotmail.com

    Muito obrigada!
    Vivi

    ResponderExcluir
  4. Mt boa as imagens da bolha de sabão, viu? Leve, delicada, indestrutível, incômoda, frágil a uma voz particular, amarga. A mesma que liberta para prender. Higieniza, esteriliza como sabão... Imaginei o pescoço de Joana enrubescendo, no engasgo da bolha! Gostei mesmo! Beijos.

    ResponderExcluir