quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Desenho a lápis

A sede a consumia. Lembrou-se de que não havia bebido água durante o dia inteiro. Olhou as nuvens e sentiu que elas podiam tornar-se chuva e matar-lhe a sede. Na verdade, havia apenas uma nuvem, distante e pequena: ela pensou ver desenhado ali o rosto de Matias. Agora a nuvem deveria ter-se tornado chuva, deveria ter-lhe aplacado uma sede mais antiga... Esqueceu-se do incômodo que a garganta seca pronunciava e pôs-se a pensar em Matias: havia sonhado com ele na noite passada. No sonho ele estava muito mais próximo do que a nuvem, ela podia sentir-lhe o hálito enquanto falava, olhos fixos nos seus, com um brilho estranho. Ele fez o improvável: pediu-lhe que reconsiderasse. Ela estacou, espantada. Nunca pensou que ele lhe falaria aquilo, tinha certeza de que não diria jamais nenhuma daquelas palavras, com o hálito a lhe perturbar os sentidos, cobrando-lhe um beijo que ela já quis muito dar. No entanto, lá estava ele. Ela recompôs-se e, molhadamente, disse-lhe que não. O que sentia era como a marca de um desenho a lápis, apagado pelo tempo e pelo atrito das palavras. As marcas denunciavam os contornos de um desenho belo, porém inexistente. Aliás, esta foi a palavra-chave que lhe disse: o que sentia era agora apenas um contorno. Era uma moldura sem pintura nem fotografia. Não servia para pendurar na parede, não servia para ser contemplada, abrigava apenas vácuo. Matias entendeu, afastou o hálito, apagou o brilho dos olhos e ela acordou. Ainda bem que sonhara, não teria então de explicar o contorno, o desenho a lápis, a borracha do tempo e das palavras. Melhor assim.

Pensava em como se sentia às vezes em relação a ele, pelo simples acaso de encontrá-lo por aí: uma raiva súbita, uma mágoa, a corroía. Mas ele lhe apontava um sorriso e a mágoa deixava de ter razão. Houve tempo em que não lhe sorria, e ela se sentia culpada: sabia ser a causa de um sofrimento evitável, sabia tê-lo magoado. Ao mesmo tempo, indignava-se, pois também estava magoada por toda aquela indiferença. Essa atmosfera tensa durou umas semanas e, enfim, cedeu lugar ao perdão – embora ela não acreditasse que o perdão seria sinônimo de desculpa. Mas foi: numa atmosfera amarela-sabática, voltaram a ser amigos-desde-sempre. Agora os sorrisos voltavam ao rosto de Matias, apontados para ela. Como sentir-se irada diante disso? Lembrou-se de que o sorriso foi uma das primeiras coisas que notara nele. Um dia, enquanto conversavam, ele sorriu sem querer sorrir: esticou levemente os lábios, deixando os dentes escondidos, como quem prende um riso. E foi a primeira vez em que ela o olhou como uma mulher olha um homem. Depois disso, já estavam perdidas as rédeas: ela cavalgava, sem estribo ou sela, um cavalo selvagem.

Agora fitava a nuvem cada vez mais distante. Já não via o rosto de Matias: em seu lugar havia apenas uma mão aberta a lhe fazer um aceno de despedida. Voltou a sentir o incômodo da garganta seca, reclamando a chuva que a nuvem levava para longe, numa mão agora fechada, como se escondesse dentro de si toda a água do mundo. Comprou uma garrafa de água mineral, sentiu o líquido gelado percorrer-lhe garganta, esôfago, estômago e sentiu que só aquilo lhe ficara de palpável. Os contornos guardavam o invisível, as sensações. Por isso era difícil livrar-se deles. Havia múltiplas sensações coloridas, pintadas docemente de lembranças, que a consolavam do adeus da nuvem. E havia a sede, palpável, concreta, loquaz. Afogou-se na água mineral de uma garrafa, no meio de uma rua larga, em pleno meio-dia. O calor da garganta projetou-se no asfalto e lhe subiu numa baforada quente que levou a nuvem para o horizonte, depositando-a sobre o invisível. Sede, nuvem e água se foram. Apenas as molduras continuavam: continuariam enquanto houvesse as lembranças e sensações coloridas. Estavam fixas a uma parede branca, para a qual olhava somente quando queria. Um dia, se desintegrariam e, como poeira fina, seriam levadas pelos ventos. Os mesmos ventos que levaram a nuvem seca.

sábado, 17 de outubro de 2009

Epitáfio


Carmem acabara de chegar do cemitério. Entrou no apartamento vazio, com seu cheiro em cada cômodo, e sentou-se defronte a uma janela aberta. Lá fora a chuva caía, fina e constante. Cá dentro, só o seu perfume e as lembranças de outros cheiros e outras datas. Lembrou de como eram bons os dias frios de chuva, quando admirava as nuvens com Mário. Sentavam-se por horas, conversavam, renovavam as juras com olhares de amor. Agora, a casa estava vazia, Mário havia ficado no cemitério, sob a chuva, sem céu nem nuvem, nem olhar algum. Já havia dois anos. Carmem foi até a sepultura do marido sem saber por quê. Não pensara em nada, não falara, apenas precisou de alguma coisa que não conhecia. Onde estava o perfume de Mário? Nenhum vão do apartamento havia guardado seu cheiro, nada restara a não ser as lembranças. E de repente, Carmem compreendeu: tinha ido ao cemitério procurar o cheiro que lhe embalara a vida. Uma lágrima escorreu-lhe pela face, denunciando que a viagem foi inútil.
Lá fora a chuva caía mais forte e pesada, contrastando com a lágrima suave de Carmem. Mas, a suavidade enganava. Era um fim de tarde intenso, de dor intensa, de latejar intenso. Saudade... e outra lágrima rolou, seguida por outras... Lembrou-se de quando se conheceram, do tempo de namoro (tantos anos depois, ele ainda a apresentava aos outros como “minha namorada”). Pensou depois no casamento, quis ver as fotos, foi buscar o álbum. Sentada no mesmo lugar, virava lentamente uma página, depois outra, e sobre cada uma pousava os olhos úmidos e sorria tristemente de lembranças. Não foi um casamento tradicional. Um dia, de manhã bem cedo, Mário apareceu na casa, dizendo que precisava urgentemente falar com Carmem. Ela abriu, assustada, temendo que algum problema tivesse acontecido. Mário, mal entrou, foi logo mostrando o anel e fazendo o pedido. Os pais consentiram, meio adormecidos ainda, e o casamento foi marcado. Porém, nada de vestido, terno, bolo, buquê. Mário era muito espirituoso: propôs um casamento civil, sem pompa, seguido por uma lua de mel em turnê pela Europa. “Quando a gente voltar, se faz um bolinho, se convidam uns amigos. Fazemos o convite assim: ‘Casamos. Deu tudo certo. Convidamos você a compartilhar da nossa alegria’” – Mário disse, em tom de brincadeira. E assim se deu. Todos protestaram, menos Carmem, e como era ela a única com poder de veto, fizeram do jeito que Mário propôs. Carmem sorriu ao relembrar essa travessura.
Ultimamente, Mário sentia constantes dores no peito. Foi a vários médicos, fez exames detalhados. O parecer do médico: coração frágil. A resposta de Mário: como pode ser, se tenho a mais linda namorada? O médico riu e lhe receitou repouso, remédios e exames periódicos. Carmem cuidava de tudo, os horários, a alimentação, o carinho. Neste passo se passaram 10 anos. E a fragilidade do coração cobrou um tributo pesado. Mário foi internado. A cada novo médico que se apresentava para o plantão, dizia: doutor, esta é minha namorada. E apontava para Carmem. Ela estava sempre ali. Lembrou-se do dia em que ele lhe disse: Carmem, meu coração vive da sua presença. Foi neste dia que ele saiu do hospital, mas não para casa... Ele tinha 87 anos, dos quais ela compartilhou 60.
Carmem tinha cada vez mais saudade do perfume de Mário, cheiro de sua presença amável. Então, com surpresa, um sorriso iluminou seu rosto: lembrava-se de ter restado um pouco desse perfume, guardado no armário. Sim, lá estava o frasco. Borrifou toda a casa, borrifou seu corpo, embriagou-se daquele cheiro antigo. Dois dias depois, foi encontrada na cadeira, em frente à janela, abraçada a um frasco de perfume e com um sorriso pétreo estampado no rosto. Deitaram-na numa sepultura ao lado da do marido. E não houve nada especial no epitáfio. No outro dia, os jornais noticiaram: “Velhinha bebe perfume e é encontrada morta!” De onde tiraram a idéia de que Carmem bebeu perfume? Não achavam outra explicação para o frasco encontrado em suas mãos, vazio. Mas então não se podia supor que houvesse amor? E que este tivesse seu próprio aroma? Agora, os perfumes só eram vendidos a velhinhos que provassem que não iam ingeri-los. Pobre humanidade...
No epitáfio de Carmem, escreveu-se apenas: “Aqui jaz Carmem Rocha Cruz, esposa de José Mário Cruz. 1930 - 2010” Nenhuma referência ao amor que os unia, ou aos aromas da chuva, ou aos olhares que trocaram. Nenhuma referência à vida que tiveram. Só a morte os unia agora. E, afinal, para que serve a poesia? O que mesmo é poesia? Em seu túmulo, ambos tinham terra molhada sobre o olfato inerte e, da posição em que estavam, fitariam noutros tempos estrelas, agora invisíveis. Mas, conservavam-se deitados lado a lado, indiferentes à insipidez do mundo. E, lentamente, sobre suas lápides, foram crescendo os ramos verdes de dois lírios brancos. Ah, alguém enfim havia permitido a poesia...

Entre o verde e o azul...

O garoto subiu no ônibus para pedir esmolas. Até aí, nenhuma novidade, os habitantes de nosso século veem, com frequência até demasiada, cenas como essa. Mas o que aconteceu a este garoto, só eu vi. Tão pequeno ele era, que nem conseguia pronunciar com clareza as palavras decoradas, que alguém lhe ensinou. Pedia mais fluentemente através dos olhos verdes que da boca gaga. Na mão, carregava uma bola, dessas de festa, com uma estampa impressa. Era seu brinquedo. Não sei como arranjou aquela bola, azul com estampa colorida, bonita e bem cheia. Enquanto pedia, tentava guardá-la numa sacola plástica. Foi então que ocorreu a fatalidade: algo na sacola fez com que a bola estourasse... O estrondo assustou o garoto, mas ele não derramou nenhuma lágrima. Apenas continuou pedindo, agora com seus olhos muito mais verdes. Olhei o menino, imaginei o que seria dele daqui a dez ou quinze anos... Sua voz gaga fazia um eco em mim – tão grande que meu coração de vidro entrou em ressonância e se partiu. Quantas vezes carregamos com cuidado nossos sonhos – azuis, festivos, bonitos – tentando protegê-los. E quantas vezes assistimos impotentes a sua destruição completa, enquanto pedimos, com o mar nos olhos, as esmolas de compreensão daqueles que existem a nosso redor. Talvez daqui a dez anos o garoto consiga chorar... Talvez um dia esvazie o verde de seus olhos... Até lá, a humanidade continuará tentando proteger seus sonhos e inundando as ruas com olhos que se secam e mudam de cor. Talvez daqui a dez anos, o garoto e eu consigamos perder o verde do nosso olhar mendigo. Mas receio que eu me afogue no mar que se formará...

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Colcha de Retalhos

A vida é uma colcha de retalhos
Costurados apressadamente
Uns aos outros.

Alguns lembram tecidos nobres,
Que adornariam princesas
Se inteiros pudessem ser...

Outros revelam-se farrapos,
Que se negariam a cobrir
Qualquer porção de um corpo qualquer...

Unimos todos os sonhos desfeitos,
Belos e suntuosos,
Aos insucessos e malogros,
Que um dia ousamos sofrer.
E faz-se a colcha de retalhos da vida.
Faz-se só, faz-se por si,
E de nós só exige o ato vil de costurar
Seus pedaços uns aos outros.

Carregamos os retalhos do que a vida nos deu
E com eles cobrimos o que não nos sobrou...
Carregamos e cobrimos,
Acreditando ser colcha
O que nunca foi mais que nosso santo sudário.

domingo, 6 de setembro de 2009

Castanholhar

Hoje uma cor do mundo me chamou a atenção: era o castanho-claro dos olhos de um jovem cego. Eu estava no ônibus, com os olhos postos na paisagem que mudava velozmente, quando senti sua mão tocar meu ombro e ouvi a pergunta: “Sabe me dizer que horas são?”. Desnorteada com a interrogação repentina e com o olhar penetrante e belo que o rapaz sequer sabia que possuía, respondi que não, não tinha relógio. É um hábito antigo: não uso relógio, detesto a escravidão ao tempo. O tempo é o único no planeta a desfrutar da eternidade e parece fugir do tédio cortando aos poucos o fio de nossas vidas. Nada escapa dele. Nem os belos olhos do rapaz escapariam... Meu coração encolheu-se numa dor profunda ao discernir que o jovem não via e nunca veria, provavelmente, a beleza de seus olhos. Talvez, se não fosse cego, conseguisse introduzir seu tom castanho-claro nos seres ao redor, captando-lhes a profundidade. Não duvido que viesse a possuir uma das chaves da compreensão humana. Parecia ter sido punido por essa capacidade... Ele desceu do ônibus tateando o chão com sua bengala e driblando os obstáculos que apareciam. Quem sabe estaria ciente do olhar que trazia... Ou será que se concentrava no problema mais imediato de não poder ver? Na tristeza de não saber que as cores dos olhares variam? Mas agora não me refiro mais ao jovem cego, refiro-me a mim e à parcela da humanidade que não enxerga suas próprias belezas... Refiro-me aos que têm, como eu, a tendência de concentrar-se nos defeitos que possuem e nos obstáculos que não transpõem por covardia. Refiro-me àqueles que apenas nos momentos de pouca iluminação percebem que são cegos num sentido mais grave... E que serão igualmente traspassados pela espada do tempo, descobrindo tarde demais que possuem tanto e que viveram tão pouco.

sábado, 29 de agosto de 2009

(In)Digesto

Conta-se que, Eresictão, por desrespeito à deusa da saciedade, foi atormentado com uma maldição eterna: teria fome insaciável. Nada do que ele comesse poderia amenizar sua angústia, nada. Comeu todos os seus rebanhos, os frutos dos seus pomares, os restos do lixo alheio – e nada. A fome continuava a roer-lhe. Até que um dia, comeu a si próprio através da boca da fome.

Há os que devoram livros: procuram, como traças, alimento no papel. Palavras soltas ou amarradas, placas ou pontas de setas que apontem: AQUI! ALI! As placas parecem escritas em língua anterior a Babel: musicadas, ritmadas, convidam à dança e embalam o sono. Mas à menor brisa, as setas mudam a direção. É inútil vigiá-las, os ventos vem e vão ao sabor de correntes desconhecidas. E o jeito é dormir com fome.

Mas isso foi há muito tempo. Hoje, os homens não desrespeitam mais a deusa da saciedade: nem acreditam nela, embora ofereçam sacrifícios diários em seu altar. Não têm mais rebanhos, não plantam mais pomares, reciclam o lixo.

Há os que procuram drogas para aliviar a fome: cola de sapato, maconha, poesia, violinos, canto gregoriano, prancha de surf, sapateado. A fome se vai. Depois da música – volta; depois dos versos – volta; depois do delírio – volta. Com a última gota de suor ou lágrima – ela sempre volta.

Conta-se que uma mutação no cromossomo 15 causa a patologia chamada síndrome de Prader-Willi. O indivíduo acometido por ela sente fome insaciável. Come todos os seus rebanhos, os frutos dos seus pomares, os restos do lixo alheio – e nada. A fome continua a roer-lhe. Até que um dia, come a si próprio através da boca da fome.

Há os que inventam para si uma resposta à pergunta que nem conhecem, como uma criança faminta desenha um bolo. A criança come o papel pintado, digere o amargo pedaço de desenho. E segue, ruminando, com alguma coisa, muito além do estômago, vazia...

Mas isso é muito raro e requer uma grande dose de azar. Hoje se faz pesquisa genética, os cromossomos constam em todos nos mapas.

Só uma coisa rói o homem de hoje: uma fome que ele não sabe a que veio nem o que quer: a Grande Fome de Fogo. Não respeita nenhuma deusa, não faz sacrifícios em nenhum altar e não consta em nenhum mapa. É a condição humana e aparece perdida e pequenina como uma estrela, que quanto mais se aproxima do horizonte, mais freneticamente pisca...

sábado, 15 de agosto de 2009

Amar com os olhos

Multidão de rostos iguais... A humanidade inteira se parecia, eram cópias exatas uns dos outros até que despontaste em meio a ela. Meus olhos te viram e negaram-se a abdicar de tal visão. Procuraram-te ansiosos em intervalos cada vez menores, até que se fixaram em ti, imóveis. Carreguei tua imagem comigo a todos os lugares que visitei, coloquei teu rosto em todas as faces que olhei. Até o fatídico dia em que te vi sorrir pela última vez, e vi teus olhos a murmurarem “adeus”, e vi teus cabelos reclamarem um afago que meus dedos receosos evitaram dar, e vi tuas mãos acenarem em despedida, e vi teus lábios me negarem o beijo ansiado, e vi tuas cores desbotarem mais e mais, e depois nada mais vi, pois deixaste-me cega e que mais haveria para se ver? Vi um mundo cada vez mais despojado da tua presença. Vi-te entre flores que te machucariam com seus espinhos, pois não és delicado o suficiente para colher o que tem espinhos ( e por isso eu havia abdicado dos meus, para tornar mais fácil o colher da flor...). Entendi cada vez mais claramente que só serias feliz comigo... mas já não podia ver-te em meio à névoa... Nem imaginavas tu que ali haveria uma flor sem espinhos que poderias colher sem medo... Ou não desejarias o que te fosse dado tão fácil?

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Ego

Descobri meu monstro! E me assustei ao ver em seu rosto meus lábios fechados, minha testa interrogativa, meu queixo contraído. Até então eu só conhecia a existência teórica dessa criatura que me expôs, de chofre, o putrefacto de mim. Caiu sobre mim ou caí sobre ela? Olho-a de relance nos espelhos que me refletem e estranho não ter percebido sua chegada. Será possível que veio de repente? Vai ficar para sempre? Assusto-me diante de mim. Há a sombra da criatura por todos os lugares que freqüento. Sim, sua sombra: quebrei os espelhos, mas não me livro da sombra. Existia já em mim tamanha aberração? Existia já em mim tamanha aberração. Existia já em mim tamanha aberração! “Ninguém é bom, exceto um só”, dizia Cristo. E eu não sou muito parecida àquele um. Minha bondade esbarra na sombra de meu monstro. Nunca o mirei no fundo dos olhos, posso ser aprisionada por seu olhar. Mas, num relance, fui olhada. Ele é eloqüente, mordaz e cínico. É sarcástico e ferino. Devora tudo, especialmente a mim. Meu monstro se chama Ego e não entende nada de psicanálise. Tem nome latino, de guerreiro romano que não sabia Latim, mas dominava à dura força os falantes de outras línguas.

sábado, 18 de julho de 2009

De tanto bater, meu coração quase parou...

Havia a dor, que a incomodava e lhe tirava o apetite. Era a maior sensação de desconforto que conhecia, inflamação nos tendões da perna direita, como lhe dissera o médico. Na casa cheia de pessoas queridas, a dor a obrigava a confinar-se no quarto de um dos anfitriões e a perder o companheirismo que tanto ansiava. Quase perder, na verdade: seu amigo veio ao quarto fazer-lhe um pouco de companhia. Também ele se obrigava a um certo confinamento, menos visível que o de Marta. Seu nome era Alfredo, era um pouco mais velho que ela, sensível e triste. E a combinação dessas três coisas despertava em Marta o sentimento confuso que se costuma chamar paixão, em português, como se exigisse sempre sofrimento (o inglês o exprime muito melhor ao dizer to fall in love. Queda causada pela vertigem e, como em toda queda, aproximação, atração, contato e, claro, às vezes, sofrimento). Agora, porém, Marta sofria muito mais com sua perna, que insistia em comportar-se como hóspede reclusa. Alfredo, percebendo o desconforto, sentou-se numa cadeira relativamente próxima a ela e a entreteve com suas conversas: era um de seus pontos fortes, sabia ter conversas inteligentes que a envolviam por completo. Marta olhava, mas não distinguia os traços do rosto de Alfredo. Era míope e estava sem óculos. Guardaria para sempre a lembrança da conversa com o vulto de quem amava. Falavam, quase sempre, de música, o que estimulava Alfredo a, em algum momento da conversa, pegar seu violão e fazer de Marta sua expectadora única. Ela se deixava cair, absolutamente entregue à vertigem. E esqueceu-se da perna que, cansada dos tremores ocasionados pelo violão de Alfredo, parou de doer. Após a música, ele saiu do quarto por alguns instantes e Marta, sentindo-se melhor, levantou-se da cama e começou a olhar os discos de vinil, preciosidades que só o amor explica. Não percebeu quando Alfredo voltou e, numa brincadeira, ele a assustou. Ao ver que o susto havia sido maior do que pensava, abraçou-a, afagando seus cabelos. Queda, aproximação, contato... Seu coração: tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum. O silêncio era absoluto, mas em algum lugar cantava Sinatra: I fall in love too easily, I fall in love too fast... Não, não era too easily: exigiu um abraço, um afago e a cura de uma dor. E não, não era too fast: o tempo desse abraço não se podia medir pelo relógio, nas quedas o tempo se dilata. Os olhos míopes de Marta viam o quarto girar enquanto sua cabeça tonta sentia-se amparada pelos braços de Alfredo. Quanto à perna que doía, já não a sentia, a queda a amortecera, o que prova que paixão é um termo inverossímil: às vezes o sofrimento acaba quando começa a queda. Quando foi embora da casa dos amigos, Marta sentiu saudades do que não sabia. Era uma vontade de concretizar o vazio. Era o vento que batia em seus cabelos enquanto caía, com o coração acelerado, esperando que os braços de Alfredo a amparassem. Mas, os ventos mudaram de rumo. E as circunstâncias o deixavam cada dia mais distante de Marta. Viam-se em concertos, coincidentemente, pois a música sempre os uniria, mas não se freqüentavam mais. Seis anos se passaram e Marta ainda sentia o coração acelerar ao menor sinal de vento. Caía uma queda infinita que, contrariando a lógica das quedas, não trazia aproximação nem contato. Caía numa espécie de vácuo, sem referenciais que lhe pudessem orientar a trajetória. E às vezes indagava-se se caía mesmo ou se estava parada no vazio, com o coração a bater-lhe nas têmporas, nas pernas, nos dedos dos pés. Mas não havia respostas: ali era o vácuo e o vento não a alcançava mais. Só a esperança lhe fazia companhia... Por quanto tempo duraria a queda? Talvez houvesse um fundo no buraco negro. Talvez... Por enquanto, ansiava o milagre de ver Alfredo, estendidos os braços, à sua espera. De vez em quando, ele aparecia, os braços prontos a um abraço. Depois do abraço, a volta a uma queda solitária e a dúvida: teria sido sempre a única a cair? Nunca caíram juntos? Marta adormeceu e sonhou com Alfredo bem próximo a ela, como depois de um abraço. Ela lhe perguntou: já caíste comigo? E ele disse: sempre. Seu coração disparou, num ímpeto que a acordou. Na esperança de continuar o sonho, sem nem abrir os olhos, virou a cabeça e voltou a dormir. Lá estava Alfredo, a mesma cena, ela perguntou-lhe novamente: já caíste comigo? E ele respondeu, desta vez: Lamento, mas não, nunca. Seu coração mais uma vez a acordou, sobressaltado. Marta suava e sentia febre. Nunca? Sempre? Qual das respostas a perturbava mais? Não havia forças para movimentar nenhum outro músculo, apenas seu coração batia sem parar tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum, até que... até que viu Alfredo no fundo do buraco negro onde caía. E ele estava com as mãos nos bolsos, não, não era isso, ele estava com os braços cruzados, não, ele estava, mas como pode ser, ele estava, não era possível, mas sim, ele estava sem os braços! Marta não conseguia enxergar sem os óculos, mas via os contornos do corpo de Alfredo, sem contudo ver seus braços. Para evitar que seu coração desesperado parasse de bater, pegou a foto que trazia dele e a pôs em frente aos olhos. Lá estava, com os braços, seu amigo. Porém, o rosto não era nítido, era como no dia fatídico da conversa no quarto, era um vulto, um vulto que ela amava. Todas as fotografias de Alfredo que carregava tinham aquele rosto desfocado. E assim o guardaria. Sem foco e sem outro destino que o de ampará-la nos braços ao fim da queda, depois de um tempo profético que ninguém conheceria até que chegasse. E que chegaria... ou não. Dormiu outra vez e, como não tinha outro parâmetro para os sonhos, sonhou com ele. Dessa vez era ele quem a procurava para lhe dizer: nunca caí com você, mas sua eterna queda me levantou do chão, e hoje sou feliz. Mensagem enigmática dos sonhos que Marta não entendeu. Serviu-lhe, não como inspiradora de atitudes, mas como revelação: queria que Alfredo fosse feliz, mesmo que não a apontasse como elemento vital à felicidade. Parecia simples: apontar-lhe caminhos que o levariam a estados de graça e fazer isso sem custo. De vez em quando, ao perceber que ele se afastava dos atalhos mais felizes, mostrar-se qual guia, ou placa, ou seta. Não deixá-lo sofrer mais do que já sofrera longe de seus cuidados. Marta sabia de suas perdas. Ansiava pôr sua cabeça no colo e afagar-lhe os cabelos, consolando-o pelas atrocidades do mundo. E nesse desejo, dissolvia-se. Seria por isso que caía infinitamente? Desejava tornar-se o atalho mais feliz que ele poderia trilhar. E por isso caía, por isso esperava. Sofria para fazer-lhe companhia, para que ele não sofresse sozinho. Sentia suas perdas mais do que qualquer outra pessoa. Até vê-lo sem os braços no fundo daquele buraco negro e perceber que sofria só. Foi a revelação disso que a fez olhar para a foto. Sofrer só era inútil, não se enquadrava nos seus objetivos. Nessa hora, com a fotografia de novo no bolso, sentiu novamente as pernas – havia chão sob seus pés. Pôs-se de pé e caminhou, espantada. Chegara ao fundo do buraco, a queda cessara, e onde ele estava? Ela não sabia, não o via ali. Apenas sentia seu coração diminuir de ritmo, desacelerando, até que quase não o ouvia. Haveria outros braços a esperá-la? Ao longe, tum, tum, tum.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Tempos avaros

Sabia que com o tempo compreenderia. Quando criança, se não entendia alguma coisa, guardava isso num baú de memória, sentindo a certeza de que um pouco de tempo era o ingrediente a faltar. E agora que o futuro chegou, o dia apresentava-se em linhas claras, com todas as expectativas. Mas... o tempo a haveria de decepcionar. Chegando de viagem, não apenas um, mas inúmeros tempos, cada qual com sua cor e fisionomia própria: um portava diploma, outro fotografia, outro dentadura... Mas alguns vinham de mãos completamente vazias e sem nenhuma surpresa no bolso... A existência de tempos avaros fazia nascer nela uma revolta, revolta armada até os dentes, à espera do comando: ATACAR! A guerra havia começado em outros acampamentos, mas seu pavilhão não se deslocara. Ainda. A qualquer momento, armas em punho, ela lutaria pela imagem que carregava (ou pensava carregar?). Inquiriria dos tempos vazios o que faziam lá, se ainda não tinham a oferta devida. Mas eles eram todos mudos, os tempos. Vez ou outra, um deles assoviava. Era só. Nada além de um assovio inútil. Ela pensava em letras, que formavam sílabas e daí palavras. Sim, pensava assim mesmo, por escrito. Palavras escritas sobrevivem aos tempos mudos, sempre dispostas a responder. O comando de guerra aproximava-se, sentia-se o estremecer do chão pisado por botas magnificamente lustradas, sentia-se o marchar dos soldados. O que fazia ela, mulher delicada e sensível, que sangrava sempre por dentro, num acampamento de guerra? Talvez tentasse sangrar por fora, em ferimento visível e irrefutável, que um tempo pudesse sarar. Estava cansada das pancadas invisíveis que não se curavam nunca e doíam com a chuva, com o sol e com o vento dos assovios que tempos irreconhecíveis cantarolavam. Chegou a voz de comando ao seu batalhão: ATACAR! Arma empunhada, passo de marcha atrás da companhia e a certeza de que não era o tempo de apertar o gatilho: não sabia manejar sua arma. Talvez fosse mais hábil com arco e flecha, mas o que tinha era uma espingarda, ou seria carabina? Sabia lá qual era a diferença. E no fim, apertar o gatilho é um movimento só, único para qualquer arma. Com o dedo a postos, esperava a ordem. De repente, no assovio de um dos tempos, o grito: FOGO! Puxou o gatilho e viu sangue sobre sua farda. Nem havia notado que estava fardada... O coração acelerava, sangue de outras pessoas respingavam nela, sentia-se livre, sentia que era o tempo de tudo aquilo. Ofegava, as pernas bambeavam, mas devia ser adrenalina em borbotões a inundar-lhe as veias. Um olhar mais atento e percebeu: o sangue a empastar sua roupa era seu. E sua arma não era menos que um canhão! Sem os órgãos vitais, surpreendia-se de notar que todos os sentidos permaneciam seus, atentos e examinadores, apalpando a circunstância e farejando o ar. Sem opção – era o que o assovio de um tempo perdido finalmente conseguiu comunicar-lhe. Sentada com as pernas dobradas, ela envolvia os joelhos com os braços, deixando a cabeça baixa, até a guerra terminar. Não podia ser o tempo de morrer. Seu suicídio não foi proposital. A culpa era dos tempos avaros...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Nada é pior do que comer sozinho

... E havia o retrato de casamento. Estava posto sobre um móvel central, numa moldura bonita, onde todos os olhares poderiam pousar sobre a imagem. Um retrato prezado de casamento que já dura décadas... Estava ali por um motivo simples: sua presença não causa dor. Sua presença não aponta um dedo cruel que diz: “você está errado”, nem um dedo hipócrita que finge acreditar que está certo. O retrato transmite a beleza de um momento que se expande, cujas conseqüências existem até hoje e sorriem umas para as outras. É terno o eterno retrato. E raro. Conheço gente que tira os retratos da sala ao menor contato com a dor. Há quem não tenha coragem suficiente para rasgá-los ou negar-lhes o direito à moldura, mas que os coloca na parede mais esquecida, dificultando o olhar das visitas – se ainda há visitas... – e o seu próprio olhar. No entanto, a existência dos retratos permanece... Apenas suas conseqüências não sorriem tanto, nem para si nem umas às outras. A parede invisível tende a rachar sob o peso das lembranças felizes, soterradas, às quais não se permite o retorno. Os sorrisos amarelecem, enrugam-se. Vez por outra uma voz se levanta (é alguém que nunca viu os retratos, nem a parede oculta, nem o vácuo de um lar despedaçado) e diz: “Nada é pior do que comer sozinho”. Ah, muitas coisas o são, cara voz, inúmeras coisas o são. Comer sozinho diariamente, por exemplo. Comer entre pessoas que não se suportam e nem sabem ao certo por quê. Não comer porque o apetite foi tragado pelo peso do que se ouviu. Escutar palavras que, se fossem facas, cortariam placas de aço. Esperar que uma pequena brisa se levante e perceber apenas o bafo do deserto e do asfalto. Sentir a solidão aterradora de não ter para onde voltar, de não ter onde se esconder quando o mundo lá fora desaba. Descobrir que o refúgio é uma mera continuação do calor insuportável e das guerras malditas do mundo (e pior, saber que às vezes no refúgio o calor e as guerras são mais insuportáveis e mais malditos do que lá fora). E mais, cara voz, há mais coisas piores: Não ter a quem recorrer em busca de consolo, de alívio. E, por trazer a sensibilidade tão em carne viva, ter de chorar de dor ao menor sinal de afeto. Ah, antes comer sozinho!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Carta a Mia Couto

Sr. Mia Couto:

Chegou às minhas mãos ontem um seu livro, o fio das missangas, que me deixou em dilema constante. Ao mesmo tempo que não consigo parar de ler, não desejo que acabe. E vai findando, contra minha desabrida vontade. Já passa do meio. De modo que resolvi, dado o poder da lembrança, fazer o que fazia quando menina: fechei meus olhos de dentro, desejando criar um mecanismo de auto-renovação. Quando eu era criança o nome era: auto-enchimento. E eu usava esse artifício quando a pipoca ameaçava acabar do saco, ou os biscoitos do pote. Eu os auto-enchia com a imaginação. Como posso auto-encher seu livro, Sr. Mia Couto? Minha invenção funcionava ao apertar de um botão. A mágica se encarregava do resto. Aqui usei várias teclas para escrever essa carta, usei vários botões para telefonar a editoras e pessoas que me pudessem endereçar estas palavras, já perco a esperança de fazer com os dedos movimento diverso do apertar de botões. Serei feliz se pensar que de cada botão penderá uma flor em conto, com as cores de seu versejamento. Porque sinto, sinto muito ao perceber, com a alegria medrosa que me cerca nas grandes descobertas, que verei em seus textos as mesmas cores que vejo nos de uma conterrânea minha, contemporânea de outros brasileiros já idos: uma certa Clarice, de um mundo Lispector. Desde 1977, ela não publica mais nada, descansada que está nas acomodações subterrâneas que se escavam para os idos. Mas, após todas as obras que ela deixou, sinto irresistível vontade de ler a próxima, aquela inescrevível. E, com certo alívio (e tristeza inevitável), vou chegando ao fim de seu livro, pensando no próximo que lerei, no próximo que escreverá e nos que necessitarei num tempo maior que a vida, se a vida não se for a tempo... Agora me diga cá se já não são poucas as necessidades do mundo que o senhor me venha produzir mais? Ainda assim, lhe peço, verbalize os sentimentos que lhe chagam, pinte-os e acetine-os e, sim, continue enviando-os, porta afora, parolando pelo mundo. Porque uma necessidade tal, quando se instala, é capaz de matar por falta da palavra exata. E não estranhe que lhe escreva uma carta dessas, é que há muito decidi não morrer de palavra enterrada, nem me findar sem ter dito tudo.

O perfume do Eu

Certamente ninguém entenderia o que se passava, e ela já estava habituada a não ser compreendida, já não esperava tanto esforço do mundo. Aquilo era ter o anti-abismo diante de si. Finalmente, sem máscara alguma, sentia-se Ela. Entendia o que era, o que queria e, mais importante, aceitava-se. Tudo havia ficado tão claro, de uma hora para outra. Bastou sentir por alguns minutos o perfume agradável que pontilhara momentos da infância perdida. Lá, nos caminhos de terra e poeira, havia deixado cair das mãos sua verdadeira identidade. Estavam claros agora até os motivos pelos quais se escondia. Antes nem ela sabia responder... Escondia-se para não ser vista por si mesma. Tinha medo do que veria, se deixasse. Tão logo veio aquele perfume, revelou-se exatamente de que mundo era - e o que viu a agradou. Pensou em convidar-se para ficar alguns dias consigo, de alma nua, de alma tão bela. Depois, com a intimidade, se convidaria a morar novamente em si, ofereceria abrigo e alimento a quem de fato era. Não mais se deixaria cair e vagar por lugares desconhecidos, longe de sua própria proteção. E, de vez em quando, voltaria aos lugares onde havia aquele perfume milagroso que lhe devolvera a identidade, voltaria sempre que se cansasse de si e aspiraria profundamente o aroma do que era. Havia nascido para ser aquele perfume... e assim seria.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O perfume do caos

O perfume persistia já havia quatro dias. Não estava no mundo lá fora, não estava em meu corpo, nem em minhas roupas, não residia em meus cabelos. O cheiro me vinha de dentro e, tal como uma música repetida até a exaustão, me levava à beira de um abismo do qual eu poderia cair em duas direções: loucura ou desilusão. Porém, pelo que se mostrava aos meus sentidos, nem a queda nem as suas conseqüências me libertariam das partículas odoríferas que se desprendiam de alguma parte de mim em direção a mim mesma. Tudo começou quando sentou ao meu lado no ônibus um rapaz que pelo físico, pelas cores e, sobretudo, pela imagem que já havia em mim, me fez pensar no dono do perfume que há quatro dias fere-me o olfato (e não só o olfato... quem me conhece sabe que um sentido nunca é afetado sozinho em mim). O perfume do caos desordenava minha vida como nunca outro aroma ousara fazer. Eu parecia ter desenvolvido – ou me conscientizado de possuir – um olfato paralelo: com ele o cheiro das coisas e pessoas próximas ainda eram sentidos o suficiente para me permitir uma existência razoavelmente normal. Enquanto escrevo esta crônica, que de crônica não tem nada além do rótulo que lhe quero dar, enquanto escrevo, o perfume do caos continua aqui. Sentou-se ao meu lado, colou-se ao meu braço direito, postou-se no lugar da minha sombra e não me deixa. Não me deixará, talvez... Faz já quatro dias! Como explicar que falhem os mecanismos biológicos que determinam a acomodação sensorial ante um estímulo repetido à exaustão? Se alguém espetasse em minha face agulhas finas, em menos de quatro minutos a pele, insensibilizada, já não sentiria dor. Mas há quatro dias inteiros um perfume invisível me espeta as sensações e em nada se dilui. É cheiro de gente, de ser humano, de homem do qual se gosta mais do que se deveria... É cheiro do olhar invisível do ser amado postado, com indiferença, sobre mim.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Estilhaços

Não sei o que faço. Não sei o que digo. As palavras esquecidas retornam e entornam sobre mim seu veneno latente. Apenas respirando, sigo. E, apenas respirando, espalho o veneno. “Chega!” – grita alguém dentro de mim, com minha voz. “Chega”, repito baixinho, com voz estranha. O tapete de meus sentimentos não existe, resta o chão, com sua frieza de dia recém-nascido. Átomos soltos – o que sobra. Meu grito é quase sempre contido. Mas dessa vez uivei de dor, uivei tão alto como jamais deveria ousar. Uivei de uma dor ilógica e estilhacei as estrelas de vidro. Cortei-me nos cacos que caíram, pontiagudos todos. O que me sobra? O chão frio dos sentimentos conflitantes, sem tapete, ensangüentado, e com bastante poeira. Sobra a noite escura e uma lua cada vez mais minguante. Não haverá plenilúnio e, se houver, obrigatoriamente as pessoas erguerão os olhos para contemplar o eclipse. Não falo por mim, que já não me conheço. Falo pelo que já fui, já tive e já pensei. Falo baixo, mais do que de costume. Atlas, num momento de dor, ousa retirar dos ombros o globo, só para perceber que não pode livrar-se dele, é seu eterno castigo. Por que pecado mesmo? Já não faz diferença, seja seguida a inércia, carregue-se o globo nas costas esfoladas. Engula-se a dor em prol da integridade das gargantas alheias. Proíbam-se os uivos. Como conter de indicador em pé o grito lancinante da dor? Como colher com um indicador em pé os cacos das estrelas estilhaçadas? Não há respostas. Para uma parte das perguntas não-retóricas nunca haverá. Justificativas, explicações, respostas... nada é necessário. Nada é útil. O globo pesa sobre as costas esfoladas, enquanto o uivo reprimido entala na garganta milhares de estilhaços estelares. “Engula as estrelas!” – diz-me a voz. “Sufoque a dor!”. Convenço-me de que o que se espera de mim é mais do que posso carregar, meus ombros estão esfolados e doem. Não posso ser culpada pela angústia de Atlas. Assumo a culpa ainda assim, mas sei que são estilhaços a me rasgar a goela, a despejar meu sangue sobre o tapete, agora inexistente, dos sentimentos que já tive e não reconheço. O uivo de dor, se permitido, provocaria alívio, quem sabe. Mas sob o globo cada vez mais plúmbeo, já não há fôlego. Cada palavra é abortada, sem que se note. Sem um movimento em socorro. Sem a dignidade de uma lágrima de adeus. Nada valeu? Contemple-se o eclipse. O plenilúnio morreu entalado de estrelas.

sábado, 30 de maio de 2009

Farewell




E de repente, teus lábios pousaram pela primeira vez sobre minha pele... E eu não esperava, embora quisesse. Não esperançava, embora soubesse que era provável. E eu sabia o significado daquilo: não era mais que o afastar das nuvens carregadas que pudessem insistir em ficar entre nós. Céu limpo, sem nuvens. Mas como eu amo o céu nublado... Teu beijo me tocou a orelha, e me atingiu o âmago. Cada fibra de meu corpo estremecia. Porém, o tremor não ousava se mostrar, restringia-se ao interior, ao mais fundo de mim. Não sei por quê, acontece que carrego uma casca que me envolve quando tudo ameaça me expor: alguma coisa de jagunço que não sei onde arranjei insiste em externar bravura, e se consome no escuro. Não sei de onde me vem tudo isso. Inapagável é a recordação do que ainda sou capaz de sentir. Meu tato é tão sensível. E o tomaste inteiramente para ti naquela tarde linda de chuva, da paz que a chuva traz. Havia paz em todo o meu redor e o redemoinho girava violentamente em mim, dentro de mim, era vermelho e escaldante. Senti minha face afogueada. Teu perfume me embriagou por uma vida. Todos os teus perfumes... Uma música tocava ao fundo: “Alguma coisa acontece no meu coração...” E estremeci por dentro e um pouco por fora. Foi quando te despediste e me abraçaste, beijando-me agora mais calculadamente na face. Meus sentidos já eram todos teus havia muito... Menos surpresa com teu gesto, consegui retribuir pousando de leve olfato e alma sobre teu pescoço. Aspirei o perfume da despedida. Só lá fora as nuvens continuavam a destilar chuvisco – entre nós, céu azul e limpo. Mas ainda estremeço... E da chuva me fica o cheiro saudoso da terra molhada.

Tenho sede!

Tudo o que possuo agora é uma imensa sede. Bebo litros de água que fazem meu estômago pesar e não aplacam a secura que me toma. Tenho sede dos que queria ter a meu lado; sede do que não fui nem serei; sede dos planos desfeitos, que joguei fora com minhas mãos insanas; sede dos sonhos bons durante o sono e do despertar tranqüilo que se seguia; sede de saber onde tudo vai dar. Não consigo sentir em meu corpo nada além da garganta seca a reclamar uma água que não possuo. Aliás a essa altura do dia sedento que vivi, a sede não se resume à garganta, me devora todos os sentidos. Tenho sede e sinto a angústia de quem, prestes a morrer, recebe, em vez de água, vinho acre numa esponja. Penso no rico que implorava a permissão de Deus para que Lázaro pingasse uma gota de água em sua língua. Minha sede não é a mesma do rico: a própria idéia de uma mísera gota de água para tamanha sede que tenho me enerva. Uma gota seria pior do que nada, seria a confirmação da impossibilidade. Aumentaria minha sede. Tenho sede! Dos abraços que neguei a mim mesma; dos aromas que não sinto mais; de cores que nunca vi; de saber exatamente onde quero chegar e como; da segurança de escolher milhões de caminhos possíveis, mesmo sabendo que nenhum deles me proverá escape na hora da fuga. Tenho sede da paz que já não sinto; do amparo que já não tenho; da vida com sabor de lembrança boa que se vai guardar. Tenho sede! Sede que já toma minha pessoa inteira. Sede que se apodera de quem já fui e de quem sou. Sede que tolhe o que eu poderia ser. Tenho muita sede de outro mundo, onde todos se amem e se respeitem, onde haja segurança nos sorrisos e inexistam ameaças nos afagos. Tenho sede de afeto, de família, de esperança. Sede de consertos. O mundo se mostra a meus olhos sedentos um grande deserto onde nem o ar possui umidade, onde nem é possível uma miragem que alivie a angústia por alguns segundos. Dizem que a sede mata. Mas não a minha. A minha só tortura, e queima e mutila, sem conceder o alívio da morte. Sede que resseca de dentro para fora, deixando mera casca prestes a incendiar-se. Casca sem seiva, sem vida, sem nada que umedeça o mundo. Tenho sede, imploro por água. Imploro pela água certa que me alivie a secura do ser, pois a água mineral não resolve. Tomei litros e litros. Simplesmente não resolve. A garganta não pára de clamar que tem sede nem quando sorve as lágrimas produzidas com a água ingerida. Tenho a sede do cosmo dentro de mim. Sede infinita da qual não se morre. Nem se vive...

Rua da Soledad

As inúmeras impossibilidades da vida... O que seríamos se fosse possível? Há coisas grandes, grandes demais para sequer sonhar em nascer. Uma dessas é agora minha cama: estou deitada sobre a solidão. Sempre me tocou muito o nome de uma rua do Recife: Rua da Soledad. Morar numa rua com este nome deve ser muito triste. Mais triste, porém, é quando a rua é que habita o ser. Trago em mim uma infinita Rua da Soledad, ladrilhada e silenciosa. Pelas adjacências da minha rua passam milhares, dezenas de milhares, de pessoas o tempo todo. Ninguém se atreve a pisar nos ladrilhos da Soledad. Mas há explicação: minha rua é escura, negra como a noite, e vez ou outra, o vento que passa girando, assobia de pavor. Por isso, ninguém a habita e nela não se ouve mais que o assobio do vento assustado e não se vê mais que o negrume da noite sem estrelas. Ah, nesta rua, porém, chove com regularidade, o que torna o solo muito fértil. Há rosas, lírios, violetas, muitas violetas... Há baobás e paus-brasil. Ninguém, no entanto, consegue observar nada, por causa da escuridão. Chego a pensar que o vento não assobia de susto, mas de encanto. Só ele conhece os mistérios belíssimos da Rua da Soledad. Deve ser por isso que continua passando. Visita todos os dias a rua silenciosa, mas esta nem o nota, tão sozinha se habituou a ser... Tem tantas coisas a mostrar e toda a solidão do mundo a tolhê-la... Ah, Rua da Soledad, um dia até o vento há de te abandonar de tanto que não respondes. Mas nem neste dia deixarás de ser a dona de tuas enormes violetas perfumadas, aquelas que escondes simplesmente por não saberes como mostrá-las aos outros.