quarta-feira, 19 de maio de 2010

Suave milagre

O despertador não tocou, e Camila acordou atrasada. Levantou-se às pressas e, mal conseguiu tomar café da manhã, teve de sair correndo, para uma rotina que hoje havia começado sem ela. No caminho, as nuvens cumpriram a ameaça e começaram a derramar a chuva em quantidade cada vez mais forte, a ponto de ela ser obrigada a parar e se refugiar debaixo de um toldo. As calçadas se enchiam de poças, os pés de Camila – enfiados apressadamente em sandálias baixas – molhavam-se, e os trovões retumbavam sem parar. Houve empurrões de gente que se aglomerava embaixo da coberta, houve o frio e o desgosto de sentir frio sozinha... Houve o tique-taque do relógio levando a rotina para mais longe de Camila, obrigando-a a correr ainda mais a fim de alcançá-la. Numa pequena trégua da chuva, encaminhou-se à parada de ônibus, tomou a condução abarrotada de gente e abafada pelo calor das janelas fechadas. Respirou ofegante o ar dividido entre dezenas de passageiros, apertados no coletivo. Seus pés molhados denunciavam o desconforto e, vez por outra, desejavam gritar impropérios aos passageiros que, na busca de maior conforto para si, os pisavam sem piedade. Na aula, Camila ouviu a repreensão pelo atraso, ouviu mais trovões que a assustaram, ouviu o resmungar dolorido dos pés... No decorrer do dia, houve a comida sem sabor do almoço fora de casa. Houve a volta solitária no ônibus que continuava lotado. E houve também um suave milagre... Os trovões não a assustaram mais; os pés calaram as reclamações; os passageiros não lhe roubaram parte do ar; a chuva não alastrou mais o frio. Não foram lembradas as advertências, nem a fome, nem o cansaço... Camila viu o sorriso de Rubem. O dia, enfim, valera a pena...