quarta-feira, 22 de julho de 2009

Ego

Descobri meu monstro! E me assustei ao ver em seu rosto meus lábios fechados, minha testa interrogativa, meu queixo contraído. Até então eu só conhecia a existência teórica dessa criatura que me expôs, de chofre, o putrefacto de mim. Caiu sobre mim ou caí sobre ela? Olho-a de relance nos espelhos que me refletem e estranho não ter percebido sua chegada. Será possível que veio de repente? Vai ficar para sempre? Assusto-me diante de mim. Há a sombra da criatura por todos os lugares que freqüento. Sim, sua sombra: quebrei os espelhos, mas não me livro da sombra. Existia já em mim tamanha aberração? Existia já em mim tamanha aberração. Existia já em mim tamanha aberração! “Ninguém é bom, exceto um só”, dizia Cristo. E eu não sou muito parecida àquele um. Minha bondade esbarra na sombra de meu monstro. Nunca o mirei no fundo dos olhos, posso ser aprisionada por seu olhar. Mas, num relance, fui olhada. Ele é eloqüente, mordaz e cínico. É sarcástico e ferino. Devora tudo, especialmente a mim. Meu monstro se chama Ego e não entende nada de psicanálise. Tem nome latino, de guerreiro romano que não sabia Latim, mas dominava à dura força os falantes de outras línguas.

sábado, 18 de julho de 2009

De tanto bater, meu coração quase parou...

Havia a dor, que a incomodava e lhe tirava o apetite. Era a maior sensação de desconforto que conhecia, inflamação nos tendões da perna direita, como lhe dissera o médico. Na casa cheia de pessoas queridas, a dor a obrigava a confinar-se no quarto de um dos anfitriões e a perder o companheirismo que tanto ansiava. Quase perder, na verdade: seu amigo veio ao quarto fazer-lhe um pouco de companhia. Também ele se obrigava a um certo confinamento, menos visível que o de Marta. Seu nome era Alfredo, era um pouco mais velho que ela, sensível e triste. E a combinação dessas três coisas despertava em Marta o sentimento confuso que se costuma chamar paixão, em português, como se exigisse sempre sofrimento (o inglês o exprime muito melhor ao dizer to fall in love. Queda causada pela vertigem e, como em toda queda, aproximação, atração, contato e, claro, às vezes, sofrimento). Agora, porém, Marta sofria muito mais com sua perna, que insistia em comportar-se como hóspede reclusa. Alfredo, percebendo o desconforto, sentou-se numa cadeira relativamente próxima a ela e a entreteve com suas conversas: era um de seus pontos fortes, sabia ter conversas inteligentes que a envolviam por completo. Marta olhava, mas não distinguia os traços do rosto de Alfredo. Era míope e estava sem óculos. Guardaria para sempre a lembrança da conversa com o vulto de quem amava. Falavam, quase sempre, de música, o que estimulava Alfredo a, em algum momento da conversa, pegar seu violão e fazer de Marta sua expectadora única. Ela se deixava cair, absolutamente entregue à vertigem. E esqueceu-se da perna que, cansada dos tremores ocasionados pelo violão de Alfredo, parou de doer. Após a música, ele saiu do quarto por alguns instantes e Marta, sentindo-se melhor, levantou-se da cama e começou a olhar os discos de vinil, preciosidades que só o amor explica. Não percebeu quando Alfredo voltou e, numa brincadeira, ele a assustou. Ao ver que o susto havia sido maior do que pensava, abraçou-a, afagando seus cabelos. Queda, aproximação, contato... Seu coração: tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum. O silêncio era absoluto, mas em algum lugar cantava Sinatra: I fall in love too easily, I fall in love too fast... Não, não era too easily: exigiu um abraço, um afago e a cura de uma dor. E não, não era too fast: o tempo desse abraço não se podia medir pelo relógio, nas quedas o tempo se dilata. Os olhos míopes de Marta viam o quarto girar enquanto sua cabeça tonta sentia-se amparada pelos braços de Alfredo. Quanto à perna que doía, já não a sentia, a queda a amortecera, o que prova que paixão é um termo inverossímil: às vezes o sofrimento acaba quando começa a queda. Quando foi embora da casa dos amigos, Marta sentiu saudades do que não sabia. Era uma vontade de concretizar o vazio. Era o vento que batia em seus cabelos enquanto caía, com o coração acelerado, esperando que os braços de Alfredo a amparassem. Mas, os ventos mudaram de rumo. E as circunstâncias o deixavam cada dia mais distante de Marta. Viam-se em concertos, coincidentemente, pois a música sempre os uniria, mas não se freqüentavam mais. Seis anos se passaram e Marta ainda sentia o coração acelerar ao menor sinal de vento. Caía uma queda infinita que, contrariando a lógica das quedas, não trazia aproximação nem contato. Caía numa espécie de vácuo, sem referenciais que lhe pudessem orientar a trajetória. E às vezes indagava-se se caía mesmo ou se estava parada no vazio, com o coração a bater-lhe nas têmporas, nas pernas, nos dedos dos pés. Mas não havia respostas: ali era o vácuo e o vento não a alcançava mais. Só a esperança lhe fazia companhia... Por quanto tempo duraria a queda? Talvez houvesse um fundo no buraco negro. Talvez... Por enquanto, ansiava o milagre de ver Alfredo, estendidos os braços, à sua espera. De vez em quando, ele aparecia, os braços prontos a um abraço. Depois do abraço, a volta a uma queda solitária e a dúvida: teria sido sempre a única a cair? Nunca caíram juntos? Marta adormeceu e sonhou com Alfredo bem próximo a ela, como depois de um abraço. Ela lhe perguntou: já caíste comigo? E ele disse: sempre. Seu coração disparou, num ímpeto que a acordou. Na esperança de continuar o sonho, sem nem abrir os olhos, virou a cabeça e voltou a dormir. Lá estava Alfredo, a mesma cena, ela perguntou-lhe novamente: já caíste comigo? E ele respondeu, desta vez: Lamento, mas não, nunca. Seu coração mais uma vez a acordou, sobressaltado. Marta suava e sentia febre. Nunca? Sempre? Qual das respostas a perturbava mais? Não havia forças para movimentar nenhum outro músculo, apenas seu coração batia sem parar tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum, até que... até que viu Alfredo no fundo do buraco negro onde caía. E ele estava com as mãos nos bolsos, não, não era isso, ele estava com os braços cruzados, não, ele estava, mas como pode ser, ele estava, não era possível, mas sim, ele estava sem os braços! Marta não conseguia enxergar sem os óculos, mas via os contornos do corpo de Alfredo, sem contudo ver seus braços. Para evitar que seu coração desesperado parasse de bater, pegou a foto que trazia dele e a pôs em frente aos olhos. Lá estava, com os braços, seu amigo. Porém, o rosto não era nítido, era como no dia fatídico da conversa no quarto, era um vulto, um vulto que ela amava. Todas as fotografias de Alfredo que carregava tinham aquele rosto desfocado. E assim o guardaria. Sem foco e sem outro destino que o de ampará-la nos braços ao fim da queda, depois de um tempo profético que ninguém conheceria até que chegasse. E que chegaria... ou não. Dormiu outra vez e, como não tinha outro parâmetro para os sonhos, sonhou com ele. Dessa vez era ele quem a procurava para lhe dizer: nunca caí com você, mas sua eterna queda me levantou do chão, e hoje sou feliz. Mensagem enigmática dos sonhos que Marta não entendeu. Serviu-lhe, não como inspiradora de atitudes, mas como revelação: queria que Alfredo fosse feliz, mesmo que não a apontasse como elemento vital à felicidade. Parecia simples: apontar-lhe caminhos que o levariam a estados de graça e fazer isso sem custo. De vez em quando, ao perceber que ele se afastava dos atalhos mais felizes, mostrar-se qual guia, ou placa, ou seta. Não deixá-lo sofrer mais do que já sofrera longe de seus cuidados. Marta sabia de suas perdas. Ansiava pôr sua cabeça no colo e afagar-lhe os cabelos, consolando-o pelas atrocidades do mundo. E nesse desejo, dissolvia-se. Seria por isso que caía infinitamente? Desejava tornar-se o atalho mais feliz que ele poderia trilhar. E por isso caía, por isso esperava. Sofria para fazer-lhe companhia, para que ele não sofresse sozinho. Sentia suas perdas mais do que qualquer outra pessoa. Até vê-lo sem os braços no fundo daquele buraco negro e perceber que sofria só. Foi a revelação disso que a fez olhar para a foto. Sofrer só era inútil, não se enquadrava nos seus objetivos. Nessa hora, com a fotografia de novo no bolso, sentiu novamente as pernas – havia chão sob seus pés. Pôs-se de pé e caminhou, espantada. Chegara ao fundo do buraco, a queda cessara, e onde ele estava? Ela não sabia, não o via ali. Apenas sentia seu coração diminuir de ritmo, desacelerando, até que quase não o ouvia. Haveria outros braços a esperá-la? Ao longe, tum, tum, tum.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Tempos avaros

Sabia que com o tempo compreenderia. Quando criança, se não entendia alguma coisa, guardava isso num baú de memória, sentindo a certeza de que um pouco de tempo era o ingrediente a faltar. E agora que o futuro chegou, o dia apresentava-se em linhas claras, com todas as expectativas. Mas... o tempo a haveria de decepcionar. Chegando de viagem, não apenas um, mas inúmeros tempos, cada qual com sua cor e fisionomia própria: um portava diploma, outro fotografia, outro dentadura... Mas alguns vinham de mãos completamente vazias e sem nenhuma surpresa no bolso... A existência de tempos avaros fazia nascer nela uma revolta, revolta armada até os dentes, à espera do comando: ATACAR! A guerra havia começado em outros acampamentos, mas seu pavilhão não se deslocara. Ainda. A qualquer momento, armas em punho, ela lutaria pela imagem que carregava (ou pensava carregar?). Inquiriria dos tempos vazios o que faziam lá, se ainda não tinham a oferta devida. Mas eles eram todos mudos, os tempos. Vez ou outra, um deles assoviava. Era só. Nada além de um assovio inútil. Ela pensava em letras, que formavam sílabas e daí palavras. Sim, pensava assim mesmo, por escrito. Palavras escritas sobrevivem aos tempos mudos, sempre dispostas a responder. O comando de guerra aproximava-se, sentia-se o estremecer do chão pisado por botas magnificamente lustradas, sentia-se o marchar dos soldados. O que fazia ela, mulher delicada e sensível, que sangrava sempre por dentro, num acampamento de guerra? Talvez tentasse sangrar por fora, em ferimento visível e irrefutável, que um tempo pudesse sarar. Estava cansada das pancadas invisíveis que não se curavam nunca e doíam com a chuva, com o sol e com o vento dos assovios que tempos irreconhecíveis cantarolavam. Chegou a voz de comando ao seu batalhão: ATACAR! Arma empunhada, passo de marcha atrás da companhia e a certeza de que não era o tempo de apertar o gatilho: não sabia manejar sua arma. Talvez fosse mais hábil com arco e flecha, mas o que tinha era uma espingarda, ou seria carabina? Sabia lá qual era a diferença. E no fim, apertar o gatilho é um movimento só, único para qualquer arma. Com o dedo a postos, esperava a ordem. De repente, no assovio de um dos tempos, o grito: FOGO! Puxou o gatilho e viu sangue sobre sua farda. Nem havia notado que estava fardada... O coração acelerava, sangue de outras pessoas respingavam nela, sentia-se livre, sentia que era o tempo de tudo aquilo. Ofegava, as pernas bambeavam, mas devia ser adrenalina em borbotões a inundar-lhe as veias. Um olhar mais atento e percebeu: o sangue a empastar sua roupa era seu. E sua arma não era menos que um canhão! Sem os órgãos vitais, surpreendia-se de notar que todos os sentidos permaneciam seus, atentos e examinadores, apalpando a circunstância e farejando o ar. Sem opção – era o que o assovio de um tempo perdido finalmente conseguiu comunicar-lhe. Sentada com as pernas dobradas, ela envolvia os joelhos com os braços, deixando a cabeça baixa, até a guerra terminar. Não podia ser o tempo de morrer. Seu suicídio não foi proposital. A culpa era dos tempos avaros...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Nada é pior do que comer sozinho

... E havia o retrato de casamento. Estava posto sobre um móvel central, numa moldura bonita, onde todos os olhares poderiam pousar sobre a imagem. Um retrato prezado de casamento que já dura décadas... Estava ali por um motivo simples: sua presença não causa dor. Sua presença não aponta um dedo cruel que diz: “você está errado”, nem um dedo hipócrita que finge acreditar que está certo. O retrato transmite a beleza de um momento que se expande, cujas conseqüências existem até hoje e sorriem umas para as outras. É terno o eterno retrato. E raro. Conheço gente que tira os retratos da sala ao menor contato com a dor. Há quem não tenha coragem suficiente para rasgá-los ou negar-lhes o direito à moldura, mas que os coloca na parede mais esquecida, dificultando o olhar das visitas – se ainda há visitas... – e o seu próprio olhar. No entanto, a existência dos retratos permanece... Apenas suas conseqüências não sorriem tanto, nem para si nem umas às outras. A parede invisível tende a rachar sob o peso das lembranças felizes, soterradas, às quais não se permite o retorno. Os sorrisos amarelecem, enrugam-se. Vez por outra uma voz se levanta (é alguém que nunca viu os retratos, nem a parede oculta, nem o vácuo de um lar despedaçado) e diz: “Nada é pior do que comer sozinho”. Ah, muitas coisas o são, cara voz, inúmeras coisas o são. Comer sozinho diariamente, por exemplo. Comer entre pessoas que não se suportam e nem sabem ao certo por quê. Não comer porque o apetite foi tragado pelo peso do que se ouviu. Escutar palavras que, se fossem facas, cortariam placas de aço. Esperar que uma pequena brisa se levante e perceber apenas o bafo do deserto e do asfalto. Sentir a solidão aterradora de não ter para onde voltar, de não ter onde se esconder quando o mundo lá fora desaba. Descobrir que o refúgio é uma mera continuação do calor insuportável e das guerras malditas do mundo (e pior, saber que às vezes no refúgio o calor e as guerras são mais insuportáveis e mais malditos do que lá fora). E mais, cara voz, há mais coisas piores: Não ter a quem recorrer em busca de consolo, de alívio. E, por trazer a sensibilidade tão em carne viva, ter de chorar de dor ao menor sinal de afeto. Ah, antes comer sozinho!