sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

factus putrefactus temporis

Vou contar uma história como a maioria das histórias – com começo, meio e fim. O que essa história não tem é sentido. A não ser que você veja sentido em um homem ser engolido por uma ostra negra ao andar na areia da praia. Ou em um homem ser abduzido por sua própria vontade a um planeta inexistente. Pois bem, começo a narrativa apresentando o cenário: uma rua deserta que desembocava em pleno nada. Não posso deixar de dizer que tudo aconteceu à meia-noite, em ponto. Um minuto antes era ainda sexta-feira. Um minuto após será já sábado. A meia-noite é aquele momento suspenso num limbo onde coisas insólitas, como esta história, podem ocorrer. Em meio a esta rua, havia um homem da cor da noite. Ele não sabia, mas a noite morava nele. Ali, confundidos homem e noite, via-se apenas um fio de sangue a escorrer pelo canto de uma boca que não se sabe mais a quem pertence. O homem dirige-se a uma pedra, colocada no meio da rua pelo orgulho de um animal ferido – não se deve estranhar esse fato, o orgulho ferido pode tudo, até uma pedra no meio da rua, da noite, do homem – e, sem aplicar mais força do que seria necessário para abrir uma porta, ele levanta a pedra (só a esta altura me lembro de dizer que a pedra era duas vezes maior que o homem) e posiciona-se, contraído, embaixo dela. A pedra acomoda-se novamente, como se pousasse sobre nada além de terra batida. O vento passa assoviando pela rua, chama o nome do homem. Silêncio... O sol bate na pedra, causa-lhe sombra, primeiro a leste, depois a oeste. E só há silêncio... Outros homens, iguais ao primeiro, diferentes apenas nas cores, verdes, azuis, vermelhos, amarelos, passam cantarolando o nome que aprenderam com o vento, mas a resposta é, como sempre, silêncio... Não. O homem não morreu. Não tornou-se pedra. Nem terra. Nem húmus. Séculos depois, o homem ergue a pedra, como se abrisse uma porta emperrada pelo tempo, e descobre que não há mais ninguém ali esperando o seu retorno. O vento ainda chama, mas, em um língua antiga, há muito desconhecida da humanidade. Na rua escura, o homem se confunde com a noite e dá-se conta de que está sozinho. O chamado é antigo, ele não sabe como responder. E não faz diferença, porque, neste momento, a noite engole o homem. Ninguém nota nada. Apenas o vento, assoviante, cantarola o nome antigo, obsoleto, inútil, que o orgulho de um animal ferido esmagou sob uma pedra, agora pulverizada pelo tempo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Restos e Sobras

...Luísa viu por dentro dele. Tinha esse poder misterioso às vezes. Olhou a fotografia e enxergou o quanto ele ainda amava Maria: na imagem, ela se encostava de leve em seu paletó e imprimia, com letras douradas, o tamanho daquele amor que era só dele. Só dele. Sem ela. Sem eles. E era um amor tão grande e sufocante que o pensamento de Luísa entoava, involuntariamente, um hino – gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso, e teu futuro espelha essa grandeza... Ela viu por dentro da foto: era Apolo com Dafne, embora pintados de outras cores... Luísa parecia ver Apolo, o deus da poesia, senhor das flechas, da música e da beleza, diante de si.  À sua frente, brincava Cupido com suas pequenas flechas cruéis. E ali, diante de Luísa, travava-se a lendária discussão entre os dois deuses sobre quem era o senhor das flechas. Apolo gabava-se de derrotar com elas o monstro-serpente de Píton. Mas Cupido, que herdou da mãe o poder de ser extremamente cruel, nada respondeu. Apenas apontou seu arco na direção de Apolo e disparou sua flecha mais afiada. O projétil atravessou o peito do poeta e saiu-lhe pelas costas, mas, como era de se esperar de uma flecha do Cupido, não o matou – apenas feriu-o profundamente de amor.  Com outra flecha, de ponta arredondada e capaz de inspirar a repulsa pelo amor oferecido, Cupido atingiu Dafne. Luísa via e não podia negar que a poesia pontilhava o ar neste momento. Dafne não oferecia esperanças de amor a Apolo, por mais belos que fossem seus poemas. E Luísa, que já havia sido atingida em outras ocasiões por flechas arredondadas e pontiagudas, causando e sentindo o sofrimento, só agora percebia que o projétil que cruzara o corpo de Apolo não parara até atingir seu próprio peito. O sangue manchava a roupa dela e era difícil acreditar que isso lhe havia acontecido. Já por um bom tempo tentava esquivar-se das flechas pontudas que varavam os ares. Falhara, não conseguira esquivar-se desta. Conta o mito que Dafne, cansada de fugir, transformou-se numa árvore, um loureiro, do qual Apolo retirava folhas e trançava como coroa – rei de si, coroado de lembranças. Mas Luísa não chegou a ver isso. Olhava a foto, Apolo e Dafne davam lugar a Maria e ele. E, apenas em sua roupa, algumas gotas de sangue ainda pingavam...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Bolha de sabão

            Não, não queria. Era só o que Joana pensava. Não queria, absolutamente. Sentia o peito pétreo, a alma intocável. Mas ao ouvir o trecho da poesia, a dureza dentro dela começou a se dissolver. A sensação trazia consigo imagem e textura: uma bolha de sabão. Linda, fina, efêmera ia a bolha, a levitar, arrastando consigo todas as filosofias que podem permear uma vida, arrastando-as e lançando-as no vazio. Uma bolha de sabão: apenas o contorno, uma moldura, em volta do ar. Joana não queria. A poesia transformara-a numa mistura heterogênea de sensações confusas. No entanto, não havia com que se preocupar, bastava um pouco de pressão e... logo a bolha estouraria: Joana continuaria a não querer. Foi então, atravessando como uma flecha este pensamento, que o celular tocou. Joana atendeu e reconheceu a voz de Raul: emoções heterogêneas a envolveram. Sua mente estava calma, sua voz estava calma, suas pernas estavam calmas. As mãos, porém, ficaram geladas. As mãos de Joana sempre pensavam demasiado devagar e demasiado alto. Eram indiscretas, expunham sua alma, como se quisessem ter nascido olhos. A bolha de sabão entalou-se-lhe na garganta e não havia meio de tirá-la de lá. Não adiantava tossir, pigarrear nem engolir qualquer alimento. Joana compreendeu que tudo isso era efeito da poesia, não se sentiria assim se Raul tivesse telefonado em outras circunstâncias, numa hora sem literatura. Que fazer, agora? Estava com a garganta obstruída por uma bolha de sabão indestrutível. Como dizer a alguém o que sentia? Como pedir ajuda? Que voz poderia transpor tamanho obstáculo?Nas línguas que conhecia, não havia uma palavra que exprimisse sua sensação, era um momento de mudez profunda. Raul estava perto do local onde Joana se encontrava. Ela sabia que o veria em alguns minutos. Suas mãos, sempre retardadas e indiscretas, congelavam. Todo o resto permanecia calmo. Joana tentou apressar-se e fugir, mas sabia ser impossível: encontraria Raul a qualquer momento, e não lhe falaria nada, pois tinha uma bolha de sabão atravessada na garganta. Raul chegou. As mãos geladas de Joana acenaram. Ao primeiro contato com a voz dele, a bolha estourou, deixando na língua um gosto amargo de sabão. Joana despediu-se e se foi, com fel na boca. Libertara-se e voltara a não querer. Não, não queria, absolutamente. No entanto, as mãos... ah, as mãos continuavam geladas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Papel de gaveta

Escute, Guilherme, esse é o som que passa pelo meu coração todas as manhãs, quando acordo já pensando em você. Está ouvindo? Sim, sim, é o som do vento, isso mesmo. É também o som do sol às quatro da tarde, em frente a um rio ou ao mar. É a imagem de água profunda, rebrilhando aos últimos raios de sol, enquanto o vento sopra... Agora você entende? É por isso que não consigo abandonar você – porque te sinto com meus sentidos de dentro. Não sei como você chegou a essa área de difícil acesso, que foi tão pouco habitada ao longo da minha vida. Mas sei que devo agradecer: há muito tempo ninguém passava por aí e isso já me fazia duvidar da existência do caminho. Você chegou cedo e eu já vou tarde, nossos espaços coincidem, mas nossos tempos não... Por isso sei que não devo te pedir para ficar, nem posso me oferecer para ir. Mas esse aparente problema não nos incomoda, não é? Sinto que não. Somos, de certa forma, a mesma procura, a própria busca pelo que virá. Não há encontro entre caminhos paralelos, também não se responde a uma pergunta com outra – mas nada impede que entre elas haja eco. E nada impede que o eco siga seu caminho. Dizem os matemáticos que retas paralelas se encontram no infinito porque, dizem os físicos, o espaço é curvo. Por isso preciso te confessar: o infinito é minha maior necessidade. Algo me diz que nossos caminhos paralelos tiveram seu breve encontro no infinito em mim. Os matemáticos e os físicos não sabem dizer se esse fenômeno se repete, e a maioria deles nunca teve a experiência em si e segue repetindo o que dizem os livros. Mas eu não sou matemática nem física, o que experimentei me veio da poesia do vento, um vento que tocava jazz e bossa quando você passava. Como agora, quando estou dizendo isso ao tu que permanece comigo enquanto você segue com sua vida. Porque eu sei quando amo alguém. É assim: esse alguém vai embora, e continua comigo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Reflexos

... De repente não era ela quem indagava da vida, mas a vida que lhe cobrava respostas – e como sempre, não cobrava em palavras: a vida cobra em atitude, nós é que inventamos a necessidade de verbalizar. Olhou-se no espelho e era como se a imagem lhe penetrasse fundo os olhos, querendo ver a atitude que não vinha. Assim acuada não conseguia responder. Precisava de espaço. No espelho já não cabiam ela e sua imagem, o quarto lhe parecia pequeno, estava sem ar. Ofegante, abriu a janela e sentiu a chuva bater-lhe no rosto, com a delicadeza de um beijo e a frieza da morte. A resposta existia, e ela a conhecia bem. Mas como agir, se não recebia nenhum sinal? Tudo não passava de coincidências... Quase despida, com os olhos cerrados, sentia o vento úmido trazer-lhe recordações do que era o amor, de como havia felicidade até em respostas feitas de sons sem nexo. Porque amor é atitude, não se faz com frases polidas. Palavra nenhuma o alcança. Pergunte a quem já amou se não prefere um olhar, um toque ou um suspiro. Lembre-se de quando você amava: preferia o verbo ou ação que ele representa? Todo linguista adora supervalorizar a palavra, mas a verdade é que os sentimentos são mudos. E enquanto a palavra é invenção e é preciso perceber como se constrói, todo o resto é descoberta e só precisa acontecer. Primeiro vem a sensação, tornando-se sentimento; depois criamos a palavra para imortalizar o não-verbal. E ao imortalizar, matamos. Então, abriu os olhos e viu a noite: a escuridão de fora realçou a luz interna e ela entendeu. Despiu-se de vez, deitou-se e dormiu, sentindo-se parte da noite, parte da chuva e do vento. O sinal era ela. Coincidência era só uma palavra e significava estar vivendo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Balada do adeus

E você não faz ideia de quantas noites chorei em meu quarto, sem um ombro sequer; e muitas vezes você me viu com os olhos vermelhos do pranto recente, mas não percebeu ou não se importou. Não sabe quantas solidões, quantas angústias, quantas vergonhas por sua causa. Enquanto você sacia seu egoísmo, as minhas afeições secam por você. Não me venha perguntar depois o que houve. Não venha me culpar depois de amanhã. A culpa é sua, por todos os seus infortúnios, e a vida, ah, essa te deu mais do que você poderia desejar com sua falta de critério. Eis alguém que joga fora o que tem de mais importante por umas patacas de algodão doce. Eis alguém dado a arrogâncias muito maiores do que as realidades do mundo: as frias realidades de quem se confronta com a morte e a dependência todos os dias.

 Cansei de você. Cansei de sua auto-piedade. Cansei de parar minha vida para aparar as sobras do lixo que você escolheu amontoar. Não posso ser responsabilizada por isso. Você escolhe, é justo que você pague, que assuma as consequências. De agora em diante vou viver cada segundo de minha vida, acendendo cada centelha com meu sopro. Não morrerei por você. Morrerei, se for o caso, por meus pecados, como tem de ser, não pelos seus. E não vou comprar esse determinismo barato, que é seu jeito de manter tudo sob seu controle e se eximir da responsabilidade. Você joga muito bem com as palavras, tem lábia. Mas não me convencerá mais. E eu – eu também sei falar. Minha mente não vai estar nas suas mãos, nem meus pensamentos nos seus ouvidos. Há um extenso precipício que apenas cresce mais a cada dia entre meus lábios e seus ouvidos.

Se a conversa não interessa, você muda de assunto, se incomoda, cala com gritos as minhas palavras, distorce realidades, fatos, provas: escava com os dentes o abismo que só cresce, só cresce, até que um dia, por fim, você não será mais sequer visível. Não sei se nesse dia serei livre, mas estarei surda aos seus discursos bolorentos contra vivos e contra mortos, sempre a seu favor. Estarei impermeável a suas palavras ácidas e corrosivas. Não confio em você. Não amo você. E é muito cansativo fazer algo que deveria ser motivado por amor quando tudo o que se sente é dever e obrigação. Por isso, saboreie a solidão que você buscou: esse ano não vou compartilhá-la.

Vou achar um jeito de relaxar essa tensão infernal que você despeja sobre mim: uma filosofia, uma música, uma imagem, um perfume... qualquer coisa que me leve a outras realidades onde você não se encontre. Tive muitos momentos bons dos quais você não sabe e é reconfortante pensar que nunca saberá. Não poderá atirar pedras da sua catapulta sobre eles. Não poderá julgá-los. Estão em lugar inacessível para você. Às vezes tenho a impressão de que cachorros estão ladrando em alvoroço, são seus discursos mais fervorosos: discursos de cachorro bravo. Assustam, machucam, mas não deixam uma palavra de lição. A casa com você é cheia de barulhos hostis que não combinam seus acordes com os meus. Anseio a uma paz sem você. Sem latidos de qualquer espécie. Paz de chuva batendo na janela, de sol nascendo na varanda, de vento entrando pela sala enquanto toca uma mistura de jazz com bossa e eu penso em pessoas que amo. Está aí a imagem que talvez me salve. Sabe de uma coisa? Vou deixar você em outro mundo e vou-me embora construir minha Pasárgada!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Para que serve uma aula de Física...


Sonhei que eu era a hipotenusa e você um cateto oposto, mas não estávamos sós neste nosso amor: havia um triângulo retângulo. Nas alturas dele encontrei sua projeção... Foi aí que conheci o cateto adjacente. Troquei você por ele, passando para o outro termo da equação, e com ele tive três senos: 30°, 45° e 60°. E ficamos tão distantes quanto os limites da circunferência estão do seu centro – tudo por um raio de dois centímetros. Aborrecida com tudo isso, tornei-me um prisma óptico. Rejeitava a luz, quando seu ângulo não me agradava, e a refletia difusamente. Cansada de reflexões, refratei-me num meio mais refringente. A velocidade mudou meu modo de pensar e você me viu bem mais próxima da normal. Você ficou com ciúmes e associou-se com espelhos planos, mas apenas conseguia formar uma imagem enantiomorfa do que antigamente fora o objeto real de nosso pincel de luz amoroso. Esgotei-me de tanto sonhar, atingi meu ângulo limite e fui vítima da reflexão total que me expulsou do mundo dos sonhos. Acordei desiludida.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Maria Marola

Maria era mediocremente a mesma, já havia 25 anos. Duas décadas e meia esperando a vida começar. Para mudar uma vírgula em sua existência, levaria outros 25, e depois, era até capaz de morrer por falha na mediocridade. Nem sequer ia com as outras, pois lhe faltava coragem de ir acompanhada. Maria Marola. Vivia de olhar as ondinhas ordinárias quebrando na praia de Olinda, sentada à beira-mar, sem entrar jamais na água por medo de não ser mais a mesma. Marolando, marolinha, marolhando, eis que viu. Ali, na areia, uma estrela do mar. Parecia ainda viva. Maria olhava, o coração a bater-lhe nas têmporas, mas cadê coragem pra dar alguns passos e levantar a estrela da areia para lançá-la ao mar, que lhe é de direito... A estrela de papo pra cima até parece com Maria. Indiferente. Imóvel. Inábil. Mas viva, ainda respirante. Até quando? Maria se enchia de raiva da estrelinha que, coitada, continuava a tostar ao sol, esperando alguém que a levasse ao seu lugar. Passaria 25 anos assim, até se calcificar e não saber mais voltar para as águas que se movem. Maria levantou-se e andou até a estrela, olhando para um lado e outro, a ver se ninguém a via. Primeiro, tocou a estrela com a ponta do pé, depois empurrou-a para um pouco mais perto do mar, com um pedaço de pau que achara no chão, deixou a estrelinha bem perto das ondas que vinham quebrar na areia, mas, quanto mais as ondas tocavam a estrela, mais esta se enfiava na areia molhada, resistindo. Maria Marola sussurrava: vai estrelinha, vai com as ondas. E nada, a estrela lá, enfiada na areia, bravamente lutando contra seu destino. Maria desistiu, voltou a olhar o mar. De vez em quando, não resistia, olhava: a estrela continuava lá. Já declinava o dia e Maria não aguentava mais aquela imobilidade, decidiu jogá-la à força dentro do mar, que era seu lugar. Mas a estrela, incansável, parecia decidida: não entraria nas águas salgadas de onde a custo saíra. Esperava era a noite descer e, numa mão em concha, levá-la para o céu, ao lado das suas irmãs-estrelas-de-verdade. Isso de viver no mar já era. Queria viver em outras imensidões. Maria, com o coração marolado, não acreditava nessa mudanças. Ao perceber que não veria resultado para os seus esforços, foi para casa. No dia seguinte, ao voltar à praia, viu o local onde encontrara a estrelinha: estava vazio, com rastros de pontas estelares. O mar a arrastou? Ou brilharia agora nas alturas? Maria, sem saber, apenas marolhava...

terça-feira, 8 de junho de 2010

Dia de Graça

Sofia já ia sair do shopping quando viu o rapaz nervoso. Ele também a viu e rapidamente pediu uma informação: onde fica o aeroporto? Sofia estranhou a pergunta, afinal, o aeroporto ficava a cerca de uma hora dali. Perguntou se o rapaz queria ir de ônibus ou de carro e explicou-lhe como estava longe. Mas, para sua surpresa, ele disse: eu vou a pé. Sofia sorriu, incrédula, a pé você não vai chegar lá, é muito longe. Mas ele insistiu, iria a pé. Havia sido assaltado assim que chegara, levaram sua carteira, seu relógio, todo o seu dinheiro e um sax, instrumento de trabalho. Ele mostrava o registro da ocorrência, feito numa delegacia. Sofia não entendia o que o rapaz estava fazendo ali, tão longe do aeroporto e da tal delegacia. Ele explicou: havia andado até ali. Durante três horas e meia, tinha vagado por Recife, pedindo ajuda a um e outro, pois não sabia de cor o endereço da única pessoa que conhecia na cidade – um amigo que o esperava para a visita, mas cujo endereço, anotado em um papel avulso, tinha ido embora na mesma bolsa que o sax... Ao contar o que acontecera, o rapaz tremia e chorava, mostrava os sapatos de couro novos, com as solas mais desgastadas do que mereciam, pela caminhada excessiva, e insistia em que Sofia visse o registro policial que o identificava. Falou que era músico e que precisava estar em Belo Horizonte até a noite ou perderia o emprego. Pediu a Sofia para fazer uma ligação para a companhia aérea em que viajaria. Mas Sofia não tinha crédito em seu celular... O rapaz parecia sufocado, como se carregasse um piano sobre os ombros. Sofia emprestou-lhe um cartão telefônico e o acompanhou a fazer a ligação. Ele remarcou a passagem, mas não sabia como chegar ao aeroporto sem dinheiro, nem como pagar a taxa de reembarque. Havia, nos olhos dele, a marca de um dia no inferno. Sofia pensou no bom samaritano, que deu o salário de dois dias para ajudar um estranho, sem esperar nada de volta. Calculou com ele todas as taxas, foi até o banco, sacou 120 reais e entregou ao rapaz, que chorava e agradecia efusivamente. Era uma mão que, de repente, o puxava do inferno pelos cabelos. O samaritano teve menos sorte, o judeu ferido sequer teve chance de lhe agradecer... O rapaz, chamado, afinal, Rogério, saxofonista, mineiro e visivelmente esgotado, anotou os dados bancários de Sofia e o número do seu celular, prometendo fazer a transferência do dinheiro o mais rápido possível. Despediram-se, ele aliviado por achar algo de bom na humanidade, ela surpresa com o gesto que teve. Uma luz brilhava no fim do túnel, a humanidade ainda vale a pena. Mas, no caminho, Rogério perdeu o papel onde anotou os dados de Sofia e não tinha outro meio de contatá-la ou de lhe restituir os 120 reais. Não sabia nada sobre ela. Quanto a Sofia, esperou três dias antes de concluir, consternada, que fora vítima de um novo golpe. Quis descrer da humanidade. Mas desistiu no caminho, ao pensar no que seria se não tivesse ajudado Rogério, em quem seria se não permitisse ao bem vir à tona de vez em quando. E, ainda amargurada, decidiu: havia doado menos do que o salário do samaritano, havia recebido mais, e acreditava num retorno, se não eterno, ao menos reincidente: se Rogério a enganara, receberia isso de volta, de um jeito ou de outro. Numa pausa do pensamento ruim, deu esmolas ao aleijado no ônibus...

A lua alumiará...


Sonhei que a lua estava muito, muito cheia. E eu a mostrava a alguns amigos, esperando deles uma reação emocionada como a que me tomava. Bem, eles... eles respondiam friamente que já a tinham visto, que estava de fato bonita, e voltavam aos seus pensamentos. Triste por não terem percebido a riqueza que eu lhes apresentara, continuei, sozinha, a admirar o meu tesouro. De repente, a lua enorme despencou na noite imensa! Sua queda se fez silenciosa e só meus olhos atentos a viram. O negrume mostrou a face, reinou absoluto. Exclamei para meus amigos que a lua havia caído do céu! E ouvi em resposta alguém me dizer que era impossível... Pelo visto, havia escuridão em mais algum lugar além da noite. Decidi, então, agir sozinha em meu benefício: corri e, num carro de mão, resgatei do chão uma lua cheia de luz. Mais uma vez, tentei mostrar a meus amigos que o impossível aconteceu, mas eles se recusaram a acreditar e nem olharam para o que eu trazia. Resignei-me por não ter comigo os amigos certos, e possuí toda só a minha lua... Pela primeira vez na vida, eu tinha o impossível nas mãos. E o fato de ninguém acreditar nisso, não tornava as coisas menos reais e importantes. Foi então que resolvi testar até onde o impossível me levaria se eu deixasse: descasquei com as mãos a capa brilhante da lua e o que passei a possuir foi uma bola de vácuo em meu carro de mão. Tornei-me então única no mundo e, feliz proprietária de uma porção enriquecedora de vácuo, acordei, ciente de que o impossível acontece...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Suave milagre

O despertador não tocou, e Camila acordou atrasada. Levantou-se às pressas e, mal conseguiu tomar café da manhã, teve de sair correndo, para uma rotina que hoje havia começado sem ela. No caminho, as nuvens cumpriram a ameaça e começaram a derramar a chuva em quantidade cada vez mais forte, a ponto de ela ser obrigada a parar e se refugiar debaixo de um toldo. As calçadas se enchiam de poças, os pés de Camila – enfiados apressadamente em sandálias baixas – molhavam-se, e os trovões retumbavam sem parar. Houve empurrões de gente que se aglomerava embaixo da coberta, houve o frio e o desgosto de sentir frio sozinha... Houve o tique-taque do relógio levando a rotina para mais longe de Camila, obrigando-a a correr ainda mais a fim de alcançá-la. Numa pequena trégua da chuva, encaminhou-se à parada de ônibus, tomou a condução abarrotada de gente e abafada pelo calor das janelas fechadas. Respirou ofegante o ar dividido entre dezenas de passageiros, apertados no coletivo. Seus pés molhados denunciavam o desconforto e, vez por outra, desejavam gritar impropérios aos passageiros que, na busca de maior conforto para si, os pisavam sem piedade. Na aula, Camila ouviu a repreensão pelo atraso, ouviu mais trovões que a assustaram, ouviu o resmungar dolorido dos pés... No decorrer do dia, houve a comida sem sabor do almoço fora de casa. Houve a volta solitária no ônibus que continuava lotado. E houve também um suave milagre... Os trovões não a assustaram mais; os pés calaram as reclamações; os passageiros não lhe roubaram parte do ar; a chuva não alastrou mais o frio. Não foram lembradas as advertências, nem a fome, nem o cansaço... Camila viu o sorriso de Rubem. O dia, enfim, valera a pena...

sábado, 17 de abril de 2010

Fulano, o Doido.

A vida é cheia de atitudes inesperadas. Às vezes, desesperadas. Às vezes, desesperançadas. Tenho um vizinho muito agitado, que fala extremamente alto e não tem noção de privacidade. Todos estão acostumados a chamá-lo de Fulano, o Doido, como se a loucura mesma lhe servisse de irônico título de anti-nobreza. E são poucos os que não se incomodam com o barulho que ele consegue fazer. Um dia, Fulano disse a sua prima que havia visto uma saia feia, a qual que lhe cairia muito bem. Disse-lhe assim mesmo, a saia é feia e só em você ficaria bem. A prima zangou-se, claro, e fulano não soube dizer-lhe que só em alguém muito bonito um adorno feio cai bem. Hoje, descobri um lado oculto da história: nessa época, Fulano ainda não era o Doido. Pois houve época em que Fulano era só Fulano. Uns 20 anos atrás, ele era saudável, falava baixo e estava apaixonado por uma vizinha sua, uma mulher que até hoje mora na mesma casa, próxima à dele. Nunca namoraram. Mas sempre que saía, Fulano lhe trazia algum presentinho. Até que um dia, a mulher, talvez cansada da bajulação gratuita, resolveu ter uma conversa franca com ele, e disse que qualquer esperança era vã. Fulano não soube lidar com o desapontamento, ou melhor, lidou a seu modo: talvez numa tentativa desesperada de ir de vez para o mundo dos sonhos, tomou 90 comprimidos para insônia. Meu pai me contou que ele foi internado num hospital onde dormiu ininterruptos 13 dias. No 14º acordou, mas nunca mais voltou a si, não se sabe se por efeito dos remédios ou por medo de encarar sua fria realidade, sem a mulher dos presentes. A quem dedicar seu tempo? Fulano passou a beber muito, a fumar muito, a falar cada vez mais alto. No entanto, de uns tempos para cá, via-se um menininho sempre próximo a ele, em sua casa, em seus braços, para lá e para cá. E ele passou a cuidar do menino, que não sei de onde chegou, creio que de uma situação pior que a sua. Fulano passou a beber menos, só não deixou de fumar e de falar alto. Era uma atitude que lembrava Chaplin e seu garoto. Agora que o menino já está maior, não se sabe quem cuida de quem, mas eles se entendem, como dois entes que se adotaram. A sanidade mental que meu pai já viu, Fulano nunca mais recobrou, mas hoje ele tem motivos para continuar vivendo. Porque a vida... a vida é cheia de atitudes inesperadas... E depois de saber dessa história, seu hábito de falar alto já não me incomoda, pois percebo que é apenas um grito dizendo que, em algum lugar, algo, de vez em quando, ainda dói.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poço de perguntas

 Tinha oito anos. Oito anos e uma vivacidade, um interesse pelo mundo, que a iluminava toda. Chamava-se Marina. Um dia, sua professora, percebendo o grande potencial de Marina rumo ao saber, a presenteou com um livro de poesias infantis. Marina leu e releu o livrinho várias vezes, mas sempre se perguntava por que alguém escrevia até o meio da página e não usava o espaço todo, se ela ao copiar as lições escolares era incentivada a ir de um canto a outro da linha de caderno... Concluiu que o autor na certa havia faltado a algumas aulas e perdoou-lhe o desperdício de espaço.

No fim de semana, seu primo Douglas, de 16 anos, introspectivo e pensante, estudava em voz alta para uma prova de Física. Marina escutava atentamente e assombrou-se com a idéia de que havia explosões muito grandes e fortes no sol, que não podiam ser ouvidas por algum motivo que não entendeu bem. Mas ficou extremamente feliz pela existência do motivo... “Já pensou como seria difícil dormir com o barulho das explosões?” – perguntava ao primo. Desde esse dia, sempre que o primo ia estudar para as provas, Marina sentava-se perto e escutava com atenção. Gostou muito de saber que o ar é composto por coisinhas (cujo nome ela havia esquecido) bem afastadas umas das outras e que isso permitia que ele ficasse bem apertadinho num recipiente, era só empurrar as coisinhas mais para perto, havia muito espaço. Ficou feliz de saber disso porque a preocupava imaginar que cada bebê que nascia ocupava lugar no espaço e assim, com o aumento da população, o ar poderia ser expulso do planeta se não fosse possível comprimi-lo. Ah, essa descoberta aliviou o coraçãozinho de Marina.

Um dia, seu primo não estudou. Marina ficou tão triste. Então, pediu-lhe que contasse a ela algo que havia aprendido ultimamente. Ela tinha muitas perguntas que as pessoas ainda não respondiam. Seu primo falou-lhe então sobre uma certa lei da natureza: nada se cria, nada se perde. Foi o suficiente para a pequena Marina fazer greve de fome. Preocupados, seus pais indagaram o motivo e receberam a resposta: “nada se cria, nada se perde. Logo, quando um bebê nasce, a terra fica uns três ou quatro quilos mais pesada. Mas quando um adulto morre, ela perde dezenas de quilos. Então, como nada pode ser perdido, as pessoas que ainda vivem acabam precisando engordar para o planeta manter seu peso. Eu não vou comer, senão ficarei obesa, há muitos adultos morrendo no mundo. E obesidade prejudica o coração.”. A resposta chocou os pais. Marina foi levada a uma psicóloga, na tentativa de que voltasse a comer. Mas foi tudo em vão. Só se alimentou novamente quando o primo lhe explicou o restante da lei natural: tudo se transforma. “Pode comer, sua boba, você vai transformar a comida em energia e não vai precisar engordar pelo planeta.” E Marina voltou a comer.

 Preocupados, seus pais proibiram que Douglas estudasse em voz alta e conversasse sobre Física ou qualquer outra disciplina com a prima. O garoto obedeceu, mas as portas já estavam abertas e Marina entraria por elas sem hesitação. Freqüentou as bibliotecas e leu livros de história, geografia, química e saúde pública. Aos dez anos podia citar todas as propriedades farmacológicas das plantas do jardim, sabia recitar trechos da obra de Dante no original e tomava diariamente chá mate ( que prefiria chamar de Ilex paraguariensis) para comprovar-lhe os benefícios que uma revista médica lhe atribuiu. Douglas foi banido da casa. Voltou a morar com seus pais em uma cidade distante o suficiente para não influenciar a pequena Marina. Mas a menina há muito já não precisava das aulas do primo, embora sentisse falta de ter alguém com quem conversar sobre o que aprendia.

Na solidão envolta em curiosidade, quase explodiu a casa tentando entender as propriedades do álcool. Seus pais tentaram novamente a psicóloga, mas novamente tudo foi em vão. Marina tinha então 13 anos, poucos amigos e uma biblioteca montada com seu próprio esforço onde se podia encontrar desde A Retórica até manuais de Química Orgânica. Aos 16 anos, Marina escreveu seu primeiro livro, intitulado “Poço de perguntas”, no qual tentava teorizar acerca dos buracos negros. A essa altura, seus pais já haviam desistido de entendê-la e consultavam eles mesmos a psicóloga, tentando descobrir onde haviam errado.

Marina tinha ainda muitas perguntas: como a tensão superficial é tão forte que as patas finas dos mosquitos não furam a capa protetora da água? Como esses mesmos mosquitos conseguem desviar-se dos pingos ao voarem na chuva? Por que depois de sucessivas divisões a célula pára de se refazer e morre? Como Camões conseguiu escrever um poema tão grande? O que estaria Douglas fazendo a essas horas? Apenas para a última, Marina obteve resposta. Douglas havia entrado de férias da universidade onde estudava Física Nuclear. Veio visitar o ramo da família que o havia banido para o exílio dos livros, longe da prima querida. Também ele era enigmático e um poço de perguntas... Quando os primos se viram e reconheceram nos olhos de um a imagem do outro, todas as perguntas se embaralharam e apenas uma sobressaltou na mente de ambos: Por que seu coração batia descontroladamente? Mas pela primeira vez não procuraram respostas... tudo era exato e óbvio demais, embora inexplicável. Compartilharam então da descoberta inenarrável que fizeram, deram-se as mãos e desse dia em diante mergulharam juntos no mundo de idéias que os livros lhes proporcionavam.

quinta-feira, 11 de março de 2010

La Preghiere

Senhor, abençoa aquela família que me fez pensar que família é uma realidade possível. Abençoa-os um por um e em conjunto. Quanto a mim, não creio nem descreio mais. Acho tudo um golpe de sorte. Essa semana me desejaram a realização de todos os meus planos (ou sonhos, já não me lembro da diferença entre ambos) com um pouco de sorte, muita coragem e sensibilidade. Tenho coragem, não sei se muita, mas bastante. Exceto para certos tipos de sensibilidade. Todos os meus interesses morrem em botão. Nunca chego a saber se seriam rosas vermelhas, orquídeas brancas, violetas perfumadas ou amores-perfeitos. São um botão seco, sob um sol que não queima...


Permita, Senhor, que as pessoas que eu amo sejam felizes e não se deixem envenenar por meus momentos de pessimismo, logo eu que otimizo tantas coisas... Permita, também, por pura bondade gratuita, que eu não me deixe corroer pelo ácido das palavras alheias, destrutivas, ou pela erosão dos meus próprios pensamentos, auto-proibitivos. Dá-me, Senhor, uma auto-estima capaz de enfrentar os desafios do mundo sem desistir antes da luta e, ao mesmo tempo, incapaz da arrogância que a vitória ou a derrota deixam entrar pela porta arrombada das emoções. Sei que tenho muita sorte, muita coisa me vem sem que eu precise ir buscar, muita coisa boa me chega de graça. Ajuda-me a saber aproveitar o que a vida me traz para o bem dos que me amam (e que eu me ame o suficiente para receber parte disso).

Não permita, Senhor, que a amargura, tantas vezes de passagem, encontre lugar para estabelecer-se em mim. Que eu consiga fazer limpezas periódicas em meu espírito, e ter sempre a coragem de jogar fora o lixo. Que meu medo não me domine, nem me abandone totalmente. Que eu sempre possa demonstrar consideração e dignidade. E que aquele grande monstro, armado até os dentes, que habita uma das minhas cavernas, nunca consiga me fazer prisioneira por mais de um dia. Minha vida é boa, Senhor, mas neste momento me sinto tão infeliz que nem sei explicar. Queira perdoar esse contra-senso, mas não esqueça que o tempo, para mim, passa mais e mais rápido do que para ti e que isso explica grande parte das minhas angústias. É quase tudo uma questão de tempo, do pouco tempo de quem não dispõe da eternidade. Amanhã talvez eu já não seja parte do cenário que verás, e é por isso, Senhor, que o hoje é tudo o que tenho. Ao mesmo tempo, o amanhã me interessa profundamente, com sua certeza de vir, sem que nada o impeça – e minha esperança de estar nele pra ver o que virá me segura diante das possibilidades de um hoje desafiador.

Não faço tudo por amor, Senhor, não, faço muito por egoísmo (e nem meu egoísmo, que devia ser amor-próprio em excesso, nem meu egoísmo é capaz de amar assim). Hoje, Pai, estou me sentindo como se nada do que já fiz de bom valesse coisa alguma. Mas sei, e o senhor também sabe, que já fiz coisas boas na vida motivada por sentimentos nobres. Tenho saudade dessa época. Há muito tempo não converso tão francamente sobre meus sentimentos: é que verbalizar torna tudo mais real e a realidade de que disponho não me agrada. Para ser sincera, às vezes me sinto injustiçada. Esqueceste de mim, Senhor? Eu continuo aqui! Olha pra mim, como já olhaste uma vez quando te desafiei a me ver, e me responde de novo! Mostra que eu estou errada de novo! E que é tudo mais simples do que parece! Porque a mim, Senhor, a mim, parece que não tem mais jeito.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Explosão de vida

Eureka! A grande descoberta aconteceu. Enfim entendia como tudo funcionava. Entendia que seu comportamento incomum era previsível. Vivia num mundo dado às aparências, que não percebia os seres humanos como estes são: seres pulsantes, com sangue, coração e cérebro. Com um pouco mais talvez. Era uma pessoa, enfim reconhecia isso. E, como pessoa, existia muito mais para dentro do que para fora. Se estava mais preocupada com o que trazia por dentro é que havia em si algo que julgava de valor maior do que o que trazia em seu exterior. Cultivara seu lado de dentro durante anos, tornara-o o mais limpo e perfumado possível, polira-o e até orgulhava-se de possuí-lo. Gostaria de mostrar seu trabalho à fatia de humanidade que a cercava... Porém alguns estavam simplesmente ocupados demais em lustrar seu exterior e já não conseguiam adentrar nas profundezas das pessoas. Além disso, como havia gasto muito tempo trabalhando em seu lado avesso, esquecera-se de polir um pouco o lado de fora – e pagava o preço por isso: onde tudo é brilho externo, quem é baço não pode ser notado. Sentia-se como se vivesse no lugar errado, um ser extraterrestre. E descobria, com tristeza, que sequer aprendera como polir-se por fora... Como um ser humano podia viver escondido em seu interior, de onde apenas espiava e amava os outros seres? O esconderijo interno, antes opção sua, agora tornava-se cativeiro. Simplesmente não sabia existir para fora. Era, aos olhos do mundo, corcunda e só a torre que trazia em si parecia-lhe segura. Assim encarava os olhares que recebia ao aventurar-se fora do esconderijo, assim os interpretava – pois na sua solidão havia-se acostumado a não perguntar, a achar as respostas em si, mesmo para coisas alheias. Com o passar do tempo, seu refúgio interno estava se tornando cada vez mais apertado, ela temia um dia já não caber dentro dele. Por isso, ainda temerosa do mundo lá fora, encolhia-se a apertava-se em seu pequeno interior abarrotado de luzes. Até que um dia, seu invólucro não resistiu e rompeu-se, espalhando por todos os lados as luzes multicoloridas que havia reunido dentro de si durante a vida. Por um segundo o mundo parou, tão grande foi o estrondo e a luminosidade emitida: alguém a amava... E, ao romper da cápsula, apareceu uma figura de mulher que brilhava ofuscantemente. Sim, ela existia. E tornara-se, enfim, visível.

sábado, 6 de março de 2010

Vivência fictícia

 
 Estava perplexa: seu pai lhe havia dito que ela era mais inteligente do que ele, tinha mais vivência – pois, segundo ele, os livros lhe ensinavam muito – embora possuísse menos experiência de vida. Ela concluiu, então, que sua vida se passava como uma obra de ficção. Já havia pensado nisso antes, mas por não saber explicar os porquês calou seu pensamento. Agora ele ressurgia com força total e a explicação brotava, viva e pulsante, na sua frente. Seus livros lhe ensinaram coisas sobre a vida... Até aquele momento, vivera a teoria da vida com intensidade. Mas experiência prática, essa lhe faltava. Percebeu que quando procurava nas lembranças cenas de vida, encontrava páginas de livros. De uns tempos pra cá vinha sentindo o vento de maneira estranha, os aromas apresentavam-se de forma diferente, até as cores pareciam-lhe mais vibrantes. Ela, porém, não sabia explicar por quê, nem entendia. Até que o comentário do pai lhe trouxe de chofre as respostas. Seria a vida chamando-a para as aulas práticas? Seria a teoria insinuando-lhe que já perdera tempo demais com ela? Compreendeu, com uma ponta de tristeza e resignação, que vivia como um poeta desgarrado, fingindo a dor que deveras sentia, sentindo mesmo a dor que fingia. Era uma vida à meia-luz, na qual só se enxergavam contornos, belos mas indefinidos. A realidade era criada, interpretada e, mais que tudo, escondida. Até que, num breve comentário despreocupado, seu pai lhe mostrava o mundo que ela secretamente deixava passar. Enfim alguém descobrira seu empenho sigiloso em não praticar a vida, seu anti carpe diem. Agora o esforço era inútil e tudo o que podia fazer era render-se. Regurgitou o rio de vida que até então só correra dentro dela e permitiu-se ser levada pelas ondas...

sexta-feira, 5 de março de 2010

Noite ilustrada


A multidão se espremia em busca da música e eu me perguntava o que havia levado tanta gente a uma velha igreja de Olinda em plena noite de feriado. O fato é que eu também estava lá, e sabia por quê. Em alguns instantes começaria a apresentação de uma orquestra sinfônica brasileira e, poucas horas depois, se apresentaria uma orquestra tcheca em outra igreja. O que as pessoas buscavam lá? Antes que a resposta me alcançasse, a música começou: os violinos lançavam gritos e gemidos dolorosos, acompanhados pelo violoncelo, num lamento que misturava saudade e procura. Havia uma gota de sangue em cada melodia e o sal de uma lágrima em cada nota. A noite era especial para mim: estavam reunidos amigos que não pensei que se reuniriam tão cedo... Na igreja lotada, cada um de nós ocupava seu lugar distante dos outros, mas os violinos, como um fio de seda, enlaçavam o público e os faziam aproximar-se. Era como se todos estivéssemos sozinhos com quem mais amávamos. Uma lágrima me veio aos olhos, sem cair, lágrima dessas que mais se sente do que se mostra, e uma palavra me veio à mente: religião. Não, não a religião como se apresenta concretamente. Mas a palavra, em si: re-ligião, re-ligação. Era um momento em que tudo se re-ligava: meus sentidos, meu espírito, minhas emoções. Em suma, todos os meus cacos. E, num segundo em que um dos violinos atingiu a nota mais plangente, orei: obrigada, meu Deus, por esse re-ligamento. Orei sem mais uma palavra durante toda a noite. Ao término do concerto, um eu mais inteiro saiu da igreja e, com os amigos todos juntos novamente, correu até a próxima apresentação. Entramos na catedral, belíssima, com colunas romanas, um sino e um altar impressionantes, e, numa das paredes, uma inscrição em latim. Acomodada, desta vez, ao lado de duas das pessoas mais sensíveis que tenho o prazer de ter na vida, assisti à execução de obras de Bach. O comentário de meu amigo: parece uma oração. E, mais uma vez sem palavras, agradeci o re-ligamento. MPB, conversas sobre música e gravatas, sorvetes e piadas envolveram o final da noite, após o concerto. Não havia mais cacos em mim, apenas o que ficou das marcas de cola. Despedi-me dos meus amigos, abraçando todos, inclusive quem eu achava que nunca mais me abraçaria... E então, nesse momento, algumas marcas de cola sumiram na noite. Vivit, regnat, imperat religationem. Amem.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Vida e Morte em 3D

Todo mundo tem um par de olhos voltados para fora, fixos nas realidades do dia a dia, e outro par voltado para dentro, comparando os fatos internos com os externos, tirando conclusões pelas sombras do que vê. É aí que reside uma das grandes diferenças entre Ciência e Arte: a Ciência busca o olhar do primeiro par, por isso repete experimentos e concretiza cálculos; a Arte quer ser vista pelos olhos de dentro e ter funções diferentes para cada golpe de vista. Enquanto numa todos os caminhos levam à mesma conclusão observável, na outra o único caminho se muliplica em bifurcações e encruzilhadas, consoante as circunstâncias de quem olha.

Sempre soube desses dois pares de olhos que o ser humano possui. O que eu não sabia era da existência de um terceiro par, que olha não para fora, nem para dentro, mas por sobre as coisas. Olhar analítico, profundamente científico, embora construído sobre a mais pura intuição. Foi com esse terceiro par de olhos que vi os olhos da morte brilhando em minha direção. Eu disse a ela que não viesse, ainda havia coisas que eu precisava fazer antes de morrer e ela não poderia me impedir. Mas a morte não parecia me ouvir, não era para mim que ela olhava, era para a mulher no leito ao lado. Demos-lhe nome: Rita de Fátima. Demos-lhe corpo: 40 anos, ventre avolumado pela infecção, olhos cerrados de dor. Demos-lhe cor: cinza-chumbo. Agora deixemos a morte dar-lhe a história. Essa não é uma história de terror, embora isso vá muito de acordo com as sensibilidades praticadas por quem lê. É de terror para os sensíveis, de horror para os volúveis, de carochinha para os incrédulos, de indiferença para os imortais.

Os olhos da morte brilhavam hipnoticamente - Rita não queria olhá-los, mas não conseguia evitar. Pediu ajuda a médicos e enfermeiros que não puderam, uns, e não quiseram, outros, desviar-lhe o olhar. A morte de Rita continuava lá, olhando-a fixamente nos olhos fechados. Levou um dia inteiro, completas 24 horas, até que lhe estendeu a mão. Era a mesma morte que olhou para mim com fixidez dois anos atrás. Por isso sei que Rita sentiu dor até o limite da dor, depois não sentiu mais nada, ouvia as vozes ao redor, via os vultos que as produziam, mal respirava e pensava em coisas agradáveis. As palavras de despedida entravam-lhe pela garganta, enquanto ela tentava devolvê-las a quem de direito, mas já era tarde. Aliás, era noite. Tudo escureceu, o sono apoderou-se de Rita e ela se sentiu embalada por mãos frias. Tudo pronto, é assim que se morre. No meu caso, vieram mãos de médica-mãe-humana-prestativa e abriram as mãos da morte com um bisturi. Meus sentidos voltaram todos. Rita não teve isso e as mãos frias a levaram embora. Eu vi, com meu terceiro par de olhos, a morte de Rita. Era aquela que não me levou. Era a que eu pude evitar. Mas, até quando?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Wordland

E quando tudo ia se tornar insuportável, quando sentiu que não agüentaria mais nem um minuto ali, pôs os fones no ouvido e escutou aquela música que a transportava a momentos felizes: "well, it’s always better when we’re together". Fechava os olhos e o nariz para relembrar o perfume alegre que aquele som trazia. E também porque o cheiro do quarto era horrível, definitivamente hospital não era o seu lugar. Sabia que o livro tinha muito a lhe dizer, sabia haver em suas mãos o suficiente de sensibilidade para entender as mensagens cifradas da literatura. Mas na escuridão do quarto não podia ler. Seus olhos doíam, denunciando o cansaço físico e mental. Denunciando também uma outra espécie de cansaço a qual ainda não havia rotulado. Não, não cobraria dos olhos o esforço de ler no escuro. Aproveitou um momento em que o homem no leito parecia ter adormecido e saiu do quarto. Ficou sentada na sala de espera, com um livro na mão, sob a luz fraca, tentando decifrá-lo com todos os seus poros. Mas o homem acordara e a presença dela era solicitada no quarto para... para quê? Ah, sim, claro, para sentar-se no escuro, com um livro fechado diante do olhar cego. Sentou-se e, para não desperdiçar as chaves que tinha em mãos, começou a pensar. Era algo que se podia fazer no escuro. Virada para dentro, recolhia palavras: seu lado interior era tudo, menos escuro. Havia lá luz bastante para iluminar-lhe os olhos. Sabia que todas as respostas existem e que podia alcançar cada uma delas. Estavam lá dentro, latejando, aguardando apenas que um dia a coragem a invada (ou o desespero, como é mais provável nos covardes) e arranque seus grilhões. Ninguém é tão forte que não possua seu calcanhar de Aquiles. Temia descobrir que é capaz; temia o peso da realização e, por fim, temia a própria coisa desejada. Contraditório? Logicamente. Pois tudo o que é vivo se contrai e se con-trai, se trai, se contradiz – e nisso tudo se constrói. Pensou: “o que é vivo se constrói aos trancos e barrancos”. Embora não saiba o que é um tranco nem um barranco. A mordaça que colocava em si existia apenas pelo medo de que a vissem antes que ela se tivesse visto. “Só existo onde não possa ser alcançada, como elétrons obedecendo a uma lei de incerteza e inacessibilidade. E isso dói, sangra, mutila”, disse-se em voz baixa. “Toda máscara se finca na pele com pregos enferrujados, toda máscara sangra a pele e o espírito.” Sempre se refugiava na ala de reclusão que carrega em seu íntimo, saindo de lá apenas quando necessário, como um ser das cavernas, sujo e com a barba na altura do peito. Teme que os outros não a reconheçam. Lembra-se de que não tem barba, mas ainda assim tem medo de que vejam a barba que não tem, apontem o dedo e digam: “ora, mas vejam como ela está diferente! Apenas a barba continua igual”. Foi então que percebeu: não podia parar! Escrever a salvava dos maus momentos da vida e não valia a pena abrir mão do ato salvador. Era preciso sentir. Deveria ser capaz de deixar a poeira voar. Por isso, num gesto iniciador, abriu as mãos, deixando escoar a terra sob a qual ocultara sua sensibilidade. Agora de mãos limpas, pegava a caneta no gesto salvador, mais uma vez. A primeira de uma nova série. A pergunta que sempre fazia – “por quê?” – vinha-lhe à mente modificada: “ E por que não?” Essa era a chave. Se conseguisse responder a essa pergunta, poderia argumentar. Mas, se não, restaria seguir seu curso, sem resistência. Seriam assim seus diálogos monologados a partir de agora:


- Por quê?

- Por medo, por dor, por opção pela insensibilidade.

- E por que não sentir? Por que não a emoção? Por que não o sonho?

Sonharia então. Sonharia com as palavras que poderia utilizar. Experimentaria a expressão, destemida. E com seu último pensamento haveria duas palavras, em qualquer idioma: ainda vivo. Mas sua boca pronunciaria apenas uma, em português, no derradeiro suspiro e destinada a um ouvido surdo: obrigada.