domingo, 19 de junho de 2011

A Vontade de Blimunda

“Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o
tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas
dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem
para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o
de olhar, que esse pouco é o que fazem os que,
olhos tendo, são outra qualidade de cegos.”
(José Saramago – Memorial do Convento)


E agora, diante do perigo, pensava no que poderia suportar: vê-lo contra a luz das 16 horas, à beira-mar, abraçando outra.Ou apresentá-lo à estranha que o levaria de suas mãos. Ou até ser madrinha de seu casamento com aquelazinha que não suportava. Mas não aguentaria vê-lo pular do nono andar. A morte era a única que ela não admitia ver de mãos dadas com ele. Agora, vendo as cores do perigo à sua frente, como sibila num mundo surdo às profecias, sofria com a descrença alheia. Ninguém evitaria o salto mortal, prestes a ser dado. Ninguém sequer notaria que ali havia um prédio de 9 andares de onde um garoto, mimado e desiludido, pretendia pular. Ela entendia os motivos ocultos. E mentalmente o perdoava, embora jamais pudesse desculpá-lo. Não era justo que fosse obrigada a olhar a ausência de cores de sua ausência. Não havia prédio algum no terreno para o qual ela olhava, mas era ali que, em frações de segundo, tudo aconteceria: edifício, varanda, ar. Na calçada, ficariam apenas as marcar de giz dos peritos e uns poucos fios da barba que o garoto teria um dia. Sabia ver as pessoas por dentro, com suas nuvens de vontades a exararem-se pelos poros. Era verdade o que diziam, que, se juntasse alguns milhares daquelas vontades voláteis, teria chance de alçar vôo? Poderia prendê-las a um balão e salvar o garoto do salto. Mas não havia tempo e, como via em cada vez mais pessoas, as vontades evaporavam em alta velocidade, substituídas pela próxima novidade. Desejava que a vontade do rapaz evaporasse, que ele desistisse de jogar tudo pelos ares apenas para sentir o vento de uma liberdade traiçoeira. Mas nem toda vontade de Blimunda era suficiente para fazê-lo casar-se com a estranha ou abraçar uma bela silhueta à beira-mar, às 16 horas. Não havia meio de mudar as vontades, como não havia de recolhê-las no seu balão. E não havia tempo: como uma bala, o corpo dele jorrou do prédio inexistente e atravessou o ar, sibilando. Lá estavam as marcas de giz. Blimunda sentiu um incômodo nos olhos: eram uns fios de barba que vieram com o vento. E que para lá voltaram, auxiliados por duas lágrimas.