terça-feira, 20 de março de 2012

Inter Rogado

Então, os sentimentos mudavam de cor? Amarelavam? Empalideciam? Não, os sentimentos eram da mesma cor em cada espinha ou ruga. No entanto, em sua relação contextual, as cores podiam se embaralhar. Desbotar. Descolorir. Ou, envernizadas, durar por tempos maiores e supostas eternidades - que duram até acabar sua fama de infindáveis. As filosofias prosseguiam, perguntas e dúvidas eram lançadas e rebatidas num pingue-pongue mental. Só que - ela sabia -, no fundo, ninguém entendia. O mais próximo que já chegara disso foi a compreensão azulejante de alguém que a vida, num lampejo de lucidez e bondade, cismou em lhe apresentar, para mostrar que impossível é uma questão de prefixo. E por essa delicadeza da vida havia muito o que agradecer. Afinal, como pode isso: compreender o que nunca se sentiu? (Im)Possível? Doía-lhe nos ombros o peso, ou a leveza - quem sabe distinguir? -, da não-reciprocidade pelo gesto que a vida lhe fazia. Doía-lhe até que se encurvava, se arqueava, assumindo a postura de uma grande e imperceptível interrogação violeta a passar na rua entre estranhos. Mais lhe valeria falar espanhol e ser o sinal inquiridor que inaugura, de ponta-cabeça, os questionamentos. Mais lhe valeria se dissesse, num ímpeto de coragem e mesmo sem confiança: incompreensão é uma questão de prefixo...

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pequenez


Fome, sol no solo, vida escaldante. O livro tratava de uma grande seca em que retirantes nordestinos despiam-se de dignidade em busca apenas da sobrevivência nua. Já outro nordestino falava, ritmadamente, dessa vida severina, em que se morre de fome um pouco por dia. E em qualquer Nordeste desse mundo, fomes, sedes e desconfortos de outra ordem usam seus imperativos - muitas vezes disfarçados em apelativos não menos imperiosos - para atormentar os pequenos seres humanos. Os pequenos. Pois os grandes estão inalcançáveis, enlevados em flocos de algodão, em seda e púrpura, despensando (e dispensando), por falta de tempo, o que incomoda. São os pequenos, quiçá medíocres, que se aventuram pelo pensamento semi-livre, tendo o sentimento semi-preso; que arremessam a cara dos seus conceitos em todos os muros previamente construídos; que sofrem fome, sede e nudez. Passam necessidades impalpáveis: as de espírito. São os insignificantes seres pensantes que se encontram em plena chuva num dia frio, ensopados até o juízo e sem saber como chegaram até ali. Nem sabem quanto da umidade é chuva, quanto é lágrima ou suor.  E, dedicando-se mediocremente a seus pensamentos, incendeiam-se com mais do que podem suportar. “Por que em menino a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?” Porque em menino tudo é pequeno demais por fora, muita coisa é grande demais para caber dentro. Os insignificantes são sempre, latentemente, às vezes pateticamente, “em menino”. Querem ousar espaço, sabendo que seu espírito limitado e inelástico não simpatiza com ideias de alargamentos. Querem alçar voo, mesmo sabendo que no seu reduzido espaço interior não cabe um par de asas abertas. Mas continuam tentando. Forçam com os pés, os punhos e o topo da cabeça, as paredes quase inelásticas do espírito; choram e gemem de dor; param para respirar, ofegantes, e depois, como que esquecidos do esforço sobre-humano, recomeçam a luta. Não sabem se um dia as paredes se distraem ou cansam da resistência gratuita. Não têm nenhuma garantia que possam oferecer como prenda ou usar como cobertor para enganar a febre. Mas precisam, com um imperativo interior, continuar lutando contra a matéria inelástica. Porque sem isso, seriam apenas grandes. Grandes espaços vazios. Ocos. E sem eco.