quinta-feira, 11 de março de 2010

La Preghiere

Senhor, abençoa aquela família que me fez pensar que família é uma realidade possível. Abençoa-os um por um e em conjunto. Quanto a mim, não creio nem descreio mais. Acho tudo um golpe de sorte. Essa semana me desejaram a realização de todos os meus planos (ou sonhos, já não me lembro da diferença entre ambos) com um pouco de sorte, muita coragem e sensibilidade. Tenho coragem, não sei se muita, mas bastante. Exceto para certos tipos de sensibilidade. Todos os meus interesses morrem em botão. Nunca chego a saber se seriam rosas vermelhas, orquídeas brancas, violetas perfumadas ou amores-perfeitos. São um botão seco, sob um sol que não queima...


Permita, Senhor, que as pessoas que eu amo sejam felizes e não se deixem envenenar por meus momentos de pessimismo, logo eu que otimizo tantas coisas... Permita, também, por pura bondade gratuita, que eu não me deixe corroer pelo ácido das palavras alheias, destrutivas, ou pela erosão dos meus próprios pensamentos, auto-proibitivos. Dá-me, Senhor, uma auto-estima capaz de enfrentar os desafios do mundo sem desistir antes da luta e, ao mesmo tempo, incapaz da arrogância que a vitória ou a derrota deixam entrar pela porta arrombada das emoções. Sei que tenho muita sorte, muita coisa me vem sem que eu precise ir buscar, muita coisa boa me chega de graça. Ajuda-me a saber aproveitar o que a vida me traz para o bem dos que me amam (e que eu me ame o suficiente para receber parte disso).

Não permita, Senhor, que a amargura, tantas vezes de passagem, encontre lugar para estabelecer-se em mim. Que eu consiga fazer limpezas periódicas em meu espírito, e ter sempre a coragem de jogar fora o lixo. Que meu medo não me domine, nem me abandone totalmente. Que eu sempre possa demonstrar consideração e dignidade. E que aquele grande monstro, armado até os dentes, que habita uma das minhas cavernas, nunca consiga me fazer prisioneira por mais de um dia. Minha vida é boa, Senhor, mas neste momento me sinto tão infeliz que nem sei explicar. Queira perdoar esse contra-senso, mas não esqueça que o tempo, para mim, passa mais e mais rápido do que para ti e que isso explica grande parte das minhas angústias. É quase tudo uma questão de tempo, do pouco tempo de quem não dispõe da eternidade. Amanhã talvez eu já não seja parte do cenário que verás, e é por isso, Senhor, que o hoje é tudo o que tenho. Ao mesmo tempo, o amanhã me interessa profundamente, com sua certeza de vir, sem que nada o impeça – e minha esperança de estar nele pra ver o que virá me segura diante das possibilidades de um hoje desafiador.

Não faço tudo por amor, Senhor, não, faço muito por egoísmo (e nem meu egoísmo, que devia ser amor-próprio em excesso, nem meu egoísmo é capaz de amar assim). Hoje, Pai, estou me sentindo como se nada do que já fiz de bom valesse coisa alguma. Mas sei, e o senhor também sabe, que já fiz coisas boas na vida motivada por sentimentos nobres. Tenho saudade dessa época. Há muito tempo não converso tão francamente sobre meus sentimentos: é que verbalizar torna tudo mais real e a realidade de que disponho não me agrada. Para ser sincera, às vezes me sinto injustiçada. Esqueceste de mim, Senhor? Eu continuo aqui! Olha pra mim, como já olhaste uma vez quando te desafiei a me ver, e me responde de novo! Mostra que eu estou errada de novo! E que é tudo mais simples do que parece! Porque a mim, Senhor, a mim, parece que não tem mais jeito.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Explosão de vida

Eureka! A grande descoberta aconteceu. Enfim entendia como tudo funcionava. Entendia que seu comportamento incomum era previsível. Vivia num mundo dado às aparências, que não percebia os seres humanos como estes são: seres pulsantes, com sangue, coração e cérebro. Com um pouco mais talvez. Era uma pessoa, enfim reconhecia isso. E, como pessoa, existia muito mais para dentro do que para fora. Se estava mais preocupada com o que trazia por dentro é que havia em si algo que julgava de valor maior do que o que trazia em seu exterior. Cultivara seu lado de dentro durante anos, tornara-o o mais limpo e perfumado possível, polira-o e até orgulhava-se de possuí-lo. Gostaria de mostrar seu trabalho à fatia de humanidade que a cercava... Porém alguns estavam simplesmente ocupados demais em lustrar seu exterior e já não conseguiam adentrar nas profundezas das pessoas. Além disso, como havia gasto muito tempo trabalhando em seu lado avesso, esquecera-se de polir um pouco o lado de fora – e pagava o preço por isso: onde tudo é brilho externo, quem é baço não pode ser notado. Sentia-se como se vivesse no lugar errado, um ser extraterrestre. E descobria, com tristeza, que sequer aprendera como polir-se por fora... Como um ser humano podia viver escondido em seu interior, de onde apenas espiava e amava os outros seres? O esconderijo interno, antes opção sua, agora tornava-se cativeiro. Simplesmente não sabia existir para fora. Era, aos olhos do mundo, corcunda e só a torre que trazia em si parecia-lhe segura. Assim encarava os olhares que recebia ao aventurar-se fora do esconderijo, assim os interpretava – pois na sua solidão havia-se acostumado a não perguntar, a achar as respostas em si, mesmo para coisas alheias. Com o passar do tempo, seu refúgio interno estava se tornando cada vez mais apertado, ela temia um dia já não caber dentro dele. Por isso, ainda temerosa do mundo lá fora, encolhia-se a apertava-se em seu pequeno interior abarrotado de luzes. Até que um dia, seu invólucro não resistiu e rompeu-se, espalhando por todos os lados as luzes multicoloridas que havia reunido dentro de si durante a vida. Por um segundo o mundo parou, tão grande foi o estrondo e a luminosidade emitida: alguém a amava... E, ao romper da cápsula, apareceu uma figura de mulher que brilhava ofuscantemente. Sim, ela existia. E tornara-se, enfim, visível.

sábado, 6 de março de 2010

Vivência fictícia

 
 Estava perplexa: seu pai lhe havia dito que ela era mais inteligente do que ele, tinha mais vivência – pois, segundo ele, os livros lhe ensinavam muito – embora possuísse menos experiência de vida. Ela concluiu, então, que sua vida se passava como uma obra de ficção. Já havia pensado nisso antes, mas por não saber explicar os porquês calou seu pensamento. Agora ele ressurgia com força total e a explicação brotava, viva e pulsante, na sua frente. Seus livros lhe ensinaram coisas sobre a vida... Até aquele momento, vivera a teoria da vida com intensidade. Mas experiência prática, essa lhe faltava. Percebeu que quando procurava nas lembranças cenas de vida, encontrava páginas de livros. De uns tempos pra cá vinha sentindo o vento de maneira estranha, os aromas apresentavam-se de forma diferente, até as cores pareciam-lhe mais vibrantes. Ela, porém, não sabia explicar por quê, nem entendia. Até que o comentário do pai lhe trouxe de chofre as respostas. Seria a vida chamando-a para as aulas práticas? Seria a teoria insinuando-lhe que já perdera tempo demais com ela? Compreendeu, com uma ponta de tristeza e resignação, que vivia como um poeta desgarrado, fingindo a dor que deveras sentia, sentindo mesmo a dor que fingia. Era uma vida à meia-luz, na qual só se enxergavam contornos, belos mas indefinidos. A realidade era criada, interpretada e, mais que tudo, escondida. Até que, num breve comentário despreocupado, seu pai lhe mostrava o mundo que ela secretamente deixava passar. Enfim alguém descobrira seu empenho sigiloso em não praticar a vida, seu anti carpe diem. Agora o esforço era inútil e tudo o que podia fazer era render-se. Regurgitou o rio de vida que até então só correra dentro dela e permitiu-se ser levada pelas ondas...

sexta-feira, 5 de março de 2010

Noite ilustrada


A multidão se espremia em busca da música e eu me perguntava o que havia levado tanta gente a uma velha igreja de Olinda em plena noite de feriado. O fato é que eu também estava lá, e sabia por quê. Em alguns instantes começaria a apresentação de uma orquestra sinfônica brasileira e, poucas horas depois, se apresentaria uma orquestra tcheca em outra igreja. O que as pessoas buscavam lá? Antes que a resposta me alcançasse, a música começou: os violinos lançavam gritos e gemidos dolorosos, acompanhados pelo violoncelo, num lamento que misturava saudade e procura. Havia uma gota de sangue em cada melodia e o sal de uma lágrima em cada nota. A noite era especial para mim: estavam reunidos amigos que não pensei que se reuniriam tão cedo... Na igreja lotada, cada um de nós ocupava seu lugar distante dos outros, mas os violinos, como um fio de seda, enlaçavam o público e os faziam aproximar-se. Era como se todos estivéssemos sozinhos com quem mais amávamos. Uma lágrima me veio aos olhos, sem cair, lágrima dessas que mais se sente do que se mostra, e uma palavra me veio à mente: religião. Não, não a religião como se apresenta concretamente. Mas a palavra, em si: re-ligião, re-ligação. Era um momento em que tudo se re-ligava: meus sentidos, meu espírito, minhas emoções. Em suma, todos os meus cacos. E, num segundo em que um dos violinos atingiu a nota mais plangente, orei: obrigada, meu Deus, por esse re-ligamento. Orei sem mais uma palavra durante toda a noite. Ao término do concerto, um eu mais inteiro saiu da igreja e, com os amigos todos juntos novamente, correu até a próxima apresentação. Entramos na catedral, belíssima, com colunas romanas, um sino e um altar impressionantes, e, numa das paredes, uma inscrição em latim. Acomodada, desta vez, ao lado de duas das pessoas mais sensíveis que tenho o prazer de ter na vida, assisti à execução de obras de Bach. O comentário de meu amigo: parece uma oração. E, mais uma vez sem palavras, agradeci o re-ligamento. MPB, conversas sobre música e gravatas, sorvetes e piadas envolveram o final da noite, após o concerto. Não havia mais cacos em mim, apenas o que ficou das marcas de cola. Despedi-me dos meus amigos, abraçando todos, inclusive quem eu achava que nunca mais me abraçaria... E então, nesse momento, algumas marcas de cola sumiram na noite. Vivit, regnat, imperat religationem. Amem.