sábado, 30 de maio de 2009

Farewell




E de repente, teus lábios pousaram pela primeira vez sobre minha pele... E eu não esperava, embora quisesse. Não esperançava, embora soubesse que era provável. E eu sabia o significado daquilo: não era mais que o afastar das nuvens carregadas que pudessem insistir em ficar entre nós. Céu limpo, sem nuvens. Mas como eu amo o céu nublado... Teu beijo me tocou a orelha, e me atingiu o âmago. Cada fibra de meu corpo estremecia. Porém, o tremor não ousava se mostrar, restringia-se ao interior, ao mais fundo de mim. Não sei por quê, acontece que carrego uma casca que me envolve quando tudo ameaça me expor: alguma coisa de jagunço que não sei onde arranjei insiste em externar bravura, e se consome no escuro. Não sei de onde me vem tudo isso. Inapagável é a recordação do que ainda sou capaz de sentir. Meu tato é tão sensível. E o tomaste inteiramente para ti naquela tarde linda de chuva, da paz que a chuva traz. Havia paz em todo o meu redor e o redemoinho girava violentamente em mim, dentro de mim, era vermelho e escaldante. Senti minha face afogueada. Teu perfume me embriagou por uma vida. Todos os teus perfumes... Uma música tocava ao fundo: “Alguma coisa acontece no meu coração...” E estremeci por dentro e um pouco por fora. Foi quando te despediste e me abraçaste, beijando-me agora mais calculadamente na face. Meus sentidos já eram todos teus havia muito... Menos surpresa com teu gesto, consegui retribuir pousando de leve olfato e alma sobre teu pescoço. Aspirei o perfume da despedida. Só lá fora as nuvens continuavam a destilar chuvisco – entre nós, céu azul e limpo. Mas ainda estremeço... E da chuva me fica o cheiro saudoso da terra molhada.

Tenho sede!

Tudo o que possuo agora é uma imensa sede. Bebo litros de água que fazem meu estômago pesar e não aplacam a secura que me toma. Tenho sede dos que queria ter a meu lado; sede do que não fui nem serei; sede dos planos desfeitos, que joguei fora com minhas mãos insanas; sede dos sonhos bons durante o sono e do despertar tranqüilo que se seguia; sede de saber onde tudo vai dar. Não consigo sentir em meu corpo nada além da garganta seca a reclamar uma água que não possuo. Aliás a essa altura do dia sedento que vivi, a sede não se resume à garganta, me devora todos os sentidos. Tenho sede e sinto a angústia de quem, prestes a morrer, recebe, em vez de água, vinho acre numa esponja. Penso no rico que implorava a permissão de Deus para que Lázaro pingasse uma gota de água em sua língua. Minha sede não é a mesma do rico: a própria idéia de uma mísera gota de água para tamanha sede que tenho me enerva. Uma gota seria pior do que nada, seria a confirmação da impossibilidade. Aumentaria minha sede. Tenho sede! Dos abraços que neguei a mim mesma; dos aromas que não sinto mais; de cores que nunca vi; de saber exatamente onde quero chegar e como; da segurança de escolher milhões de caminhos possíveis, mesmo sabendo que nenhum deles me proverá escape na hora da fuga. Tenho sede da paz que já não sinto; do amparo que já não tenho; da vida com sabor de lembrança boa que se vai guardar. Tenho sede! Sede que já toma minha pessoa inteira. Sede que se apodera de quem já fui e de quem sou. Sede que tolhe o que eu poderia ser. Tenho muita sede de outro mundo, onde todos se amem e se respeitem, onde haja segurança nos sorrisos e inexistam ameaças nos afagos. Tenho sede de afeto, de família, de esperança. Sede de consertos. O mundo se mostra a meus olhos sedentos um grande deserto onde nem o ar possui umidade, onde nem é possível uma miragem que alivie a angústia por alguns segundos. Dizem que a sede mata. Mas não a minha. A minha só tortura, e queima e mutila, sem conceder o alívio da morte. Sede que resseca de dentro para fora, deixando mera casca prestes a incendiar-se. Casca sem seiva, sem vida, sem nada que umedeça o mundo. Tenho sede, imploro por água. Imploro pela água certa que me alivie a secura do ser, pois a água mineral não resolve. Tomei litros e litros. Simplesmente não resolve. A garganta não pára de clamar que tem sede nem quando sorve as lágrimas produzidas com a água ingerida. Tenho a sede do cosmo dentro de mim. Sede infinita da qual não se morre. Nem se vive...

Rua da Soledad

As inúmeras impossibilidades da vida... O que seríamos se fosse possível? Há coisas grandes, grandes demais para sequer sonhar em nascer. Uma dessas é agora minha cama: estou deitada sobre a solidão. Sempre me tocou muito o nome de uma rua do Recife: Rua da Soledad. Morar numa rua com este nome deve ser muito triste. Mais triste, porém, é quando a rua é que habita o ser. Trago em mim uma infinita Rua da Soledad, ladrilhada e silenciosa. Pelas adjacências da minha rua passam milhares, dezenas de milhares, de pessoas o tempo todo. Ninguém se atreve a pisar nos ladrilhos da Soledad. Mas há explicação: minha rua é escura, negra como a noite, e vez ou outra, o vento que passa girando, assobia de pavor. Por isso, ninguém a habita e nela não se ouve mais que o assobio do vento assustado e não se vê mais que o negrume da noite sem estrelas. Ah, nesta rua, porém, chove com regularidade, o que torna o solo muito fértil. Há rosas, lírios, violetas, muitas violetas... Há baobás e paus-brasil. Ninguém, no entanto, consegue observar nada, por causa da escuridão. Chego a pensar que o vento não assobia de susto, mas de encanto. Só ele conhece os mistérios belíssimos da Rua da Soledad. Deve ser por isso que continua passando. Visita todos os dias a rua silenciosa, mas esta nem o nota, tão sozinha se habituou a ser... Tem tantas coisas a mostrar e toda a solidão do mundo a tolhê-la... Ah, Rua da Soledad, um dia até o vento há de te abandonar de tanto que não respondes. Mas nem neste dia deixarás de ser a dona de tuas enormes violetas perfumadas, aquelas que escondes simplesmente por não saberes como mostrá-las aos outros.