terça-feira, 14 de setembro de 2010

Reflexos

... De repente não era ela quem indagava da vida, mas a vida que lhe cobrava respostas – e como sempre, não cobrava em palavras: a vida cobra em atitude, nós é que inventamos a necessidade de verbalizar. Olhou-se no espelho e era como se a imagem lhe penetrasse fundo os olhos, querendo ver a atitude que não vinha. Assim acuada não conseguia responder. Precisava de espaço. No espelho já não cabiam ela e sua imagem, o quarto lhe parecia pequeno, estava sem ar. Ofegante, abriu a janela e sentiu a chuva bater-lhe no rosto, com a delicadeza de um beijo e a frieza da morte. A resposta existia, e ela a conhecia bem. Mas como agir, se não recebia nenhum sinal? Tudo não passava de coincidências... Quase despida, com os olhos cerrados, sentia o vento úmido trazer-lhe recordações do que era o amor, de como havia felicidade até em respostas feitas de sons sem nexo. Porque amor é atitude, não se faz com frases polidas. Palavra nenhuma o alcança. Pergunte a quem já amou se não prefere um olhar, um toque ou um suspiro. Lembre-se de quando você amava: preferia o verbo ou ação que ele representa? Todo linguista adora supervalorizar a palavra, mas a verdade é que os sentimentos são mudos. E enquanto a palavra é invenção e é preciso perceber como se constrói, todo o resto é descoberta e só precisa acontecer. Primeiro vem a sensação, tornando-se sentimento; depois criamos a palavra para imortalizar o não-verbal. E ao imortalizar, matamos. Então, abriu os olhos e viu a noite: a escuridão de fora realçou a luz interna e ela entendeu. Despiu-se de vez, deitou-se e dormiu, sentindo-se parte da noite, parte da chuva e do vento. O sinal era ela. Coincidência era só uma palavra e significava estar vivendo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Balada do adeus

E você não faz ideia de quantas noites chorei em meu quarto, sem um ombro sequer; e muitas vezes você me viu com os olhos vermelhos do pranto recente, mas não percebeu ou não se importou. Não sabe quantas solidões, quantas angústias, quantas vergonhas por sua causa. Enquanto você sacia seu egoísmo, as minhas afeições secam por você. Não me venha perguntar depois o que houve. Não venha me culpar depois de amanhã. A culpa é sua, por todos os seus infortúnios, e a vida, ah, essa te deu mais do que você poderia desejar com sua falta de critério. Eis alguém que joga fora o que tem de mais importante por umas patacas de algodão doce. Eis alguém dado a arrogâncias muito maiores do que as realidades do mundo: as frias realidades de quem se confronta com a morte e a dependência todos os dias.

 Cansei de você. Cansei de sua auto-piedade. Cansei de parar minha vida para aparar as sobras do lixo que você escolheu amontoar. Não posso ser responsabilizada por isso. Você escolhe, é justo que você pague, que assuma as consequências. De agora em diante vou viver cada segundo de minha vida, acendendo cada centelha com meu sopro. Não morrerei por você. Morrerei, se for o caso, por meus pecados, como tem de ser, não pelos seus. E não vou comprar esse determinismo barato, que é seu jeito de manter tudo sob seu controle e se eximir da responsabilidade. Você joga muito bem com as palavras, tem lábia. Mas não me convencerá mais. E eu – eu também sei falar. Minha mente não vai estar nas suas mãos, nem meus pensamentos nos seus ouvidos. Há um extenso precipício que apenas cresce mais a cada dia entre meus lábios e seus ouvidos.

Se a conversa não interessa, você muda de assunto, se incomoda, cala com gritos as minhas palavras, distorce realidades, fatos, provas: escava com os dentes o abismo que só cresce, só cresce, até que um dia, por fim, você não será mais sequer visível. Não sei se nesse dia serei livre, mas estarei surda aos seus discursos bolorentos contra vivos e contra mortos, sempre a seu favor. Estarei impermeável a suas palavras ácidas e corrosivas. Não confio em você. Não amo você. E é muito cansativo fazer algo que deveria ser motivado por amor quando tudo o que se sente é dever e obrigação. Por isso, saboreie a solidão que você buscou: esse ano não vou compartilhá-la.

Vou achar um jeito de relaxar essa tensão infernal que você despeja sobre mim: uma filosofia, uma música, uma imagem, um perfume... qualquer coisa que me leve a outras realidades onde você não se encontre. Tive muitos momentos bons dos quais você não sabe e é reconfortante pensar que nunca saberá. Não poderá atirar pedras da sua catapulta sobre eles. Não poderá julgá-los. Estão em lugar inacessível para você. Às vezes tenho a impressão de que cachorros estão ladrando em alvoroço, são seus discursos mais fervorosos: discursos de cachorro bravo. Assustam, machucam, mas não deixam uma palavra de lição. A casa com você é cheia de barulhos hostis que não combinam seus acordes com os meus. Anseio a uma paz sem você. Sem latidos de qualquer espécie. Paz de chuva batendo na janela, de sol nascendo na varanda, de vento entrando pela sala enquanto toca uma mistura de jazz com bossa e eu penso em pessoas que amo. Está aí a imagem que talvez me salve. Sabe de uma coisa? Vou deixar você em outro mundo e vou-me embora construir minha Pasárgada!