segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Wordland

E quando tudo ia se tornar insuportável, quando sentiu que não agüentaria mais nem um minuto ali, pôs os fones no ouvido e escutou aquela música que a transportava a momentos felizes: "well, it’s always better when we’re together". Fechava os olhos e o nariz para relembrar o perfume alegre que aquele som trazia. E também porque o cheiro do quarto era horrível, definitivamente hospital não era o seu lugar. Sabia que o livro tinha muito a lhe dizer, sabia haver em suas mãos o suficiente de sensibilidade para entender as mensagens cifradas da literatura. Mas na escuridão do quarto não podia ler. Seus olhos doíam, denunciando o cansaço físico e mental. Denunciando também uma outra espécie de cansaço a qual ainda não havia rotulado. Não, não cobraria dos olhos o esforço de ler no escuro. Aproveitou um momento em que o homem no leito parecia ter adormecido e saiu do quarto. Ficou sentada na sala de espera, com um livro na mão, sob a luz fraca, tentando decifrá-lo com todos os seus poros. Mas o homem acordara e a presença dela era solicitada no quarto para... para quê? Ah, sim, claro, para sentar-se no escuro, com um livro fechado diante do olhar cego. Sentou-se e, para não desperdiçar as chaves que tinha em mãos, começou a pensar. Era algo que se podia fazer no escuro. Virada para dentro, recolhia palavras: seu lado interior era tudo, menos escuro. Havia lá luz bastante para iluminar-lhe os olhos. Sabia que todas as respostas existem e que podia alcançar cada uma delas. Estavam lá dentro, latejando, aguardando apenas que um dia a coragem a invada (ou o desespero, como é mais provável nos covardes) e arranque seus grilhões. Ninguém é tão forte que não possua seu calcanhar de Aquiles. Temia descobrir que é capaz; temia o peso da realização e, por fim, temia a própria coisa desejada. Contraditório? Logicamente. Pois tudo o que é vivo se contrai e se con-trai, se trai, se contradiz – e nisso tudo se constrói. Pensou: “o que é vivo se constrói aos trancos e barrancos”. Embora não saiba o que é um tranco nem um barranco. A mordaça que colocava em si existia apenas pelo medo de que a vissem antes que ela se tivesse visto. “Só existo onde não possa ser alcançada, como elétrons obedecendo a uma lei de incerteza e inacessibilidade. E isso dói, sangra, mutila”, disse-se em voz baixa. “Toda máscara se finca na pele com pregos enferrujados, toda máscara sangra a pele e o espírito.” Sempre se refugiava na ala de reclusão que carrega em seu íntimo, saindo de lá apenas quando necessário, como um ser das cavernas, sujo e com a barba na altura do peito. Teme que os outros não a reconheçam. Lembra-se de que não tem barba, mas ainda assim tem medo de que vejam a barba que não tem, apontem o dedo e digam: “ora, mas vejam como ela está diferente! Apenas a barba continua igual”. Foi então que percebeu: não podia parar! Escrever a salvava dos maus momentos da vida e não valia a pena abrir mão do ato salvador. Era preciso sentir. Deveria ser capaz de deixar a poeira voar. Por isso, num gesto iniciador, abriu as mãos, deixando escoar a terra sob a qual ocultara sua sensibilidade. Agora de mãos limpas, pegava a caneta no gesto salvador, mais uma vez. A primeira de uma nova série. A pergunta que sempre fazia – “por quê?” – vinha-lhe à mente modificada: “ E por que não?” Essa era a chave. Se conseguisse responder a essa pergunta, poderia argumentar. Mas, se não, restaria seguir seu curso, sem resistência. Seriam assim seus diálogos monologados a partir de agora:


- Por quê?

- Por medo, por dor, por opção pela insensibilidade.

- E por que não sentir? Por que não a emoção? Por que não o sonho?

Sonharia então. Sonharia com as palavras que poderia utilizar. Experimentaria a expressão, destemida. E com seu último pensamento haveria duas palavras, em qualquer idioma: ainda vivo. Mas sua boca pronunciaria apenas uma, em português, no derradeiro suspiro e destinada a um ouvido surdo: obrigada.

2 comentários:

  1. Violet, minha amiga, que texto! "E o pulso ainda pulsa", apesar de. Sempre ganhamos, com seu olhar pra dentro! Este verso soa como um badalo, como um golpe, nas certeza das certezas: "Contraditório? Logicamente. Pois tudo o que é vivo se contrai e se con-trai, se trai, se contradiz – e nisso tudo se constrói." Gostei muito da construção! A referência inicial à música dos Titãs não foi gratuita. Foi a essa imagem-símbolo que a leitura desse trecho em especial me levou. Que feliz que a roda da Fortuna está girando e que esta é a primeira série dessa nova 'volta'! Grande beijo!

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  2. Excelente texto. Muito fluente e com construções intrigantes. É sempre um prazer ler textos assim. Abaixo a literatura burocrática! Viva as palavras que querem sair boca-a-fora!

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