terça-feira, 16 de novembro de 2010

Restos e Sobras

...Luísa viu por dentro dele. Tinha esse poder misterioso às vezes. Olhou a fotografia e enxergou o quanto ele ainda amava Maria: na imagem, ela se encostava de leve em seu paletó e imprimia, com letras douradas, o tamanho daquele amor que era só dele. Só dele. Sem ela. Sem eles. E era um amor tão grande e sufocante que o pensamento de Luísa entoava, involuntariamente, um hino – gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso, e teu futuro espelha essa grandeza... Ela viu por dentro da foto: era Apolo com Dafne, embora pintados de outras cores... Luísa parecia ver Apolo, o deus da poesia, senhor das flechas, da música e da beleza, diante de si.  À sua frente, brincava Cupido com suas pequenas flechas cruéis. E ali, diante de Luísa, travava-se a lendária discussão entre os dois deuses sobre quem era o senhor das flechas. Apolo gabava-se de derrotar com elas o monstro-serpente de Píton. Mas Cupido, que herdou da mãe o poder de ser extremamente cruel, nada respondeu. Apenas apontou seu arco na direção de Apolo e disparou sua flecha mais afiada. O projétil atravessou o peito do poeta e saiu-lhe pelas costas, mas, como era de se esperar de uma flecha do Cupido, não o matou – apenas feriu-o profundamente de amor.  Com outra flecha, de ponta arredondada e capaz de inspirar a repulsa pelo amor oferecido, Cupido atingiu Dafne. Luísa via e não podia negar que a poesia pontilhava o ar neste momento. Dafne não oferecia esperanças de amor a Apolo, por mais belos que fossem seus poemas. E Luísa, que já havia sido atingida em outras ocasiões por flechas arredondadas e pontiagudas, causando e sentindo o sofrimento, só agora percebia que o projétil que cruzara o corpo de Apolo não parara até atingir seu próprio peito. O sangue manchava a roupa dela e era difícil acreditar que isso lhe havia acontecido. Já por um bom tempo tentava esquivar-se das flechas pontudas que varavam os ares. Falhara, não conseguira esquivar-se desta. Conta o mito que Dafne, cansada de fugir, transformou-se numa árvore, um loureiro, do qual Apolo retirava folhas e trançava como coroa – rei de si, coroado de lembranças. Mas Luísa não chegou a ver isso. Olhava a foto, Apolo e Dafne davam lugar a Maria e ele. E, apenas em sua roupa, algumas gotas de sangue ainda pingavam...

2 comentários:

  1. Malditas flexas de Cupido... desgraçado!

    O texto, como sempre, belo!

    Beijos Lí!

    MH

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  2. Que texto inspirador professora, maravilhosamente belo tal quais os textos que a sra. nos mostra nas aulas. Senti uma forte influência de Eliane Brum nas suas frases. :D

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