sábado, 17 de outubro de 2009

Epitáfio


Carmem acabara de chegar do cemitério. Entrou no apartamento vazio, com seu cheiro em cada cômodo, e sentou-se defronte a uma janela aberta. Lá fora a chuva caía, fina e constante. Cá dentro, só o seu perfume e as lembranças de outros cheiros e outras datas. Lembrou de como eram bons os dias frios de chuva, quando admirava as nuvens com Mário. Sentavam-se por horas, conversavam, renovavam as juras com olhares de amor. Agora, a casa estava vazia, Mário havia ficado no cemitério, sob a chuva, sem céu nem nuvem, nem olhar algum. Já havia dois anos. Carmem foi até a sepultura do marido sem saber por quê. Não pensara em nada, não falara, apenas precisou de alguma coisa que não conhecia. Onde estava o perfume de Mário? Nenhum vão do apartamento havia guardado seu cheiro, nada restara a não ser as lembranças. E de repente, Carmem compreendeu: tinha ido ao cemitério procurar o cheiro que lhe embalara a vida. Uma lágrima escorreu-lhe pela face, denunciando que a viagem foi inútil.
Lá fora a chuva caía mais forte e pesada, contrastando com a lágrima suave de Carmem. Mas, a suavidade enganava. Era um fim de tarde intenso, de dor intensa, de latejar intenso. Saudade... e outra lágrima rolou, seguida por outras... Lembrou-se de quando se conheceram, do tempo de namoro (tantos anos depois, ele ainda a apresentava aos outros como “minha namorada”). Pensou depois no casamento, quis ver as fotos, foi buscar o álbum. Sentada no mesmo lugar, virava lentamente uma página, depois outra, e sobre cada uma pousava os olhos úmidos e sorria tristemente de lembranças. Não foi um casamento tradicional. Um dia, de manhã bem cedo, Mário apareceu na casa, dizendo que precisava urgentemente falar com Carmem. Ela abriu, assustada, temendo que algum problema tivesse acontecido. Mário, mal entrou, foi logo mostrando o anel e fazendo o pedido. Os pais consentiram, meio adormecidos ainda, e o casamento foi marcado. Porém, nada de vestido, terno, bolo, buquê. Mário era muito espirituoso: propôs um casamento civil, sem pompa, seguido por uma lua de mel em turnê pela Europa. “Quando a gente voltar, se faz um bolinho, se convidam uns amigos. Fazemos o convite assim: ‘Casamos. Deu tudo certo. Convidamos você a compartilhar da nossa alegria’” – Mário disse, em tom de brincadeira. E assim se deu. Todos protestaram, menos Carmem, e como era ela a única com poder de veto, fizeram do jeito que Mário propôs. Carmem sorriu ao relembrar essa travessura.
Ultimamente, Mário sentia constantes dores no peito. Foi a vários médicos, fez exames detalhados. O parecer do médico: coração frágil. A resposta de Mário: como pode ser, se tenho a mais linda namorada? O médico riu e lhe receitou repouso, remédios e exames periódicos. Carmem cuidava de tudo, os horários, a alimentação, o carinho. Neste passo se passaram 10 anos. E a fragilidade do coração cobrou um tributo pesado. Mário foi internado. A cada novo médico que se apresentava para o plantão, dizia: doutor, esta é minha namorada. E apontava para Carmem. Ela estava sempre ali. Lembrou-se do dia em que ele lhe disse: Carmem, meu coração vive da sua presença. Foi neste dia que ele saiu do hospital, mas não para casa... Ele tinha 87 anos, dos quais ela compartilhou 60.
Carmem tinha cada vez mais saudade do perfume de Mário, cheiro de sua presença amável. Então, com surpresa, um sorriso iluminou seu rosto: lembrava-se de ter restado um pouco desse perfume, guardado no armário. Sim, lá estava o frasco. Borrifou toda a casa, borrifou seu corpo, embriagou-se daquele cheiro antigo. Dois dias depois, foi encontrada na cadeira, em frente à janela, abraçada a um frasco de perfume e com um sorriso pétreo estampado no rosto. Deitaram-na numa sepultura ao lado da do marido. E não houve nada especial no epitáfio. No outro dia, os jornais noticiaram: “Velhinha bebe perfume e é encontrada morta!” De onde tiraram a idéia de que Carmem bebeu perfume? Não achavam outra explicação para o frasco encontrado em suas mãos, vazio. Mas então não se podia supor que houvesse amor? E que este tivesse seu próprio aroma? Agora, os perfumes só eram vendidos a velhinhos que provassem que não iam ingeri-los. Pobre humanidade...
No epitáfio de Carmem, escreveu-se apenas: “Aqui jaz Carmem Rocha Cruz, esposa de José Mário Cruz. 1930 - 2010” Nenhuma referência ao amor que os unia, ou aos aromas da chuva, ou aos olhares que trocaram. Nenhuma referência à vida que tiveram. Só a morte os unia agora. E, afinal, para que serve a poesia? O que mesmo é poesia? Em seu túmulo, ambos tinham terra molhada sobre o olfato inerte e, da posição em que estavam, fitariam noutros tempos estrelas, agora invisíveis. Mas, conservavam-se deitados lado a lado, indiferentes à insipidez do mundo. E, lentamente, sobre suas lápides, foram crescendo os ramos verdes de dois lírios brancos. Ah, alguém enfim havia permitido a poesia...

Um comentário:

  1. Olhai os lírios do campo! Eles ainda existem! Não há imagem mais comovente do que a flor que brota do asfalto, da vida que nasce no concreto, da resitência, afinal.

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