sexta-feira, 5 de março de 2010

Noite ilustrada


A multidão se espremia em busca da música e eu me perguntava o que havia levado tanta gente a uma velha igreja de Olinda em plena noite de feriado. O fato é que eu também estava lá, e sabia por quê. Em alguns instantes começaria a apresentação de uma orquestra sinfônica brasileira e, poucas horas depois, se apresentaria uma orquestra tcheca em outra igreja. O que as pessoas buscavam lá? Antes que a resposta me alcançasse, a música começou: os violinos lançavam gritos e gemidos dolorosos, acompanhados pelo violoncelo, num lamento que misturava saudade e procura. Havia uma gota de sangue em cada melodia e o sal de uma lágrima em cada nota. A noite era especial para mim: estavam reunidos amigos que não pensei que se reuniriam tão cedo... Na igreja lotada, cada um de nós ocupava seu lugar distante dos outros, mas os violinos, como um fio de seda, enlaçavam o público e os faziam aproximar-se. Era como se todos estivéssemos sozinhos com quem mais amávamos. Uma lágrima me veio aos olhos, sem cair, lágrima dessas que mais se sente do que se mostra, e uma palavra me veio à mente: religião. Não, não a religião como se apresenta concretamente. Mas a palavra, em si: re-ligião, re-ligação. Era um momento em que tudo se re-ligava: meus sentidos, meu espírito, minhas emoções. Em suma, todos os meus cacos. E, num segundo em que um dos violinos atingiu a nota mais plangente, orei: obrigada, meu Deus, por esse re-ligamento. Orei sem mais uma palavra durante toda a noite. Ao término do concerto, um eu mais inteiro saiu da igreja e, com os amigos todos juntos novamente, correu até a próxima apresentação. Entramos na catedral, belíssima, com colunas romanas, um sino e um altar impressionantes, e, numa das paredes, uma inscrição em latim. Acomodada, desta vez, ao lado de duas das pessoas mais sensíveis que tenho o prazer de ter na vida, assisti à execução de obras de Bach. O comentário de meu amigo: parece uma oração. E, mais uma vez sem palavras, agradeci o re-ligamento. MPB, conversas sobre música e gravatas, sorvetes e piadas envolveram o final da noite, após o concerto. Não havia mais cacos em mim, apenas o que ficou das marcas de cola. Despedi-me dos meus amigos, abraçando todos, inclusive quem eu achava que nunca mais me abraçaria... E então, nesse momento, algumas marcas de cola sumiram na noite. Vivit, regnat, imperat religationem. Amem.

2 comentários:

  1. Um das coisas que mais gosto nos seus textos - e este é um bom exemplo disso - é a maneira como vc desconstrói (ok, essa palavra já carrega o fardo da discussão em massa)termos/temas e reorienta a nossa linha de raciocínio. A ideia da religião, como nos é apresentada, é tocante. É como uma forma de assoprar o pó no que se diz cristalizado. Gostei mesmo do texto! Beijo!

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  2. Muito bom. Uma crônica com toques poéticos e, como sempre, bonitas imagens surgindo de uma combinação inesperada de palavras. Há alguma coisa mística sobre a música clássica que talvez nem os próprios especialistas consigam explicar. A simples soma das notas não consegue representar o que o todo nos passa.

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