sábado, 6 de março de 2010

Vivência fictícia

 
 Estava perplexa: seu pai lhe havia dito que ela era mais inteligente do que ele, tinha mais vivência – pois, segundo ele, os livros lhe ensinavam muito – embora possuísse menos experiência de vida. Ela concluiu, então, que sua vida se passava como uma obra de ficção. Já havia pensado nisso antes, mas por não saber explicar os porquês calou seu pensamento. Agora ele ressurgia com força total e a explicação brotava, viva e pulsante, na sua frente. Seus livros lhe ensinaram coisas sobre a vida... Até aquele momento, vivera a teoria da vida com intensidade. Mas experiência prática, essa lhe faltava. Percebeu que quando procurava nas lembranças cenas de vida, encontrava páginas de livros. De uns tempos pra cá vinha sentindo o vento de maneira estranha, os aromas apresentavam-se de forma diferente, até as cores pareciam-lhe mais vibrantes. Ela, porém, não sabia explicar por quê, nem entendia. Até que o comentário do pai lhe trouxe de chofre as respostas. Seria a vida chamando-a para as aulas práticas? Seria a teoria insinuando-lhe que já perdera tempo demais com ela? Compreendeu, com uma ponta de tristeza e resignação, que vivia como um poeta desgarrado, fingindo a dor que deveras sentia, sentindo mesmo a dor que fingia. Era uma vida à meia-luz, na qual só se enxergavam contornos, belos mas indefinidos. A realidade era criada, interpretada e, mais que tudo, escondida. Até que, num breve comentário despreocupado, seu pai lhe mostrava o mundo que ela secretamente deixava passar. Enfim alguém descobrira seu empenho sigiloso em não praticar a vida, seu anti carpe diem. Agora o esforço era inútil e tudo o que podia fazer era render-se. Regurgitou o rio de vida que até então só correra dentro dela e permitiu-se ser levada pelas ondas...

Um comentário:

  1. Já é possível enxergar características bem típicas dos teus textos, as belas imagens, as referências veladas, as construções inesperadas, as dúvidas que emergem em meio ao texto. Isto tudo está coerente com o inacabamento que te identifica. As imagens com rios me lembram a filosofia oriental. Mais uma vez, um bom texto.

    P.S.: gostei do "anti carpe diem".

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