sábado, 2 de abril de 2011

Ex-posição...

E não é que no meio do parque construíram uma galeria?! Exposição inaugural de Abelardo da Hora, com esculturas e desenhos, tudo grátis. A esse preço, Juscelino, que nunca fora a uma exposição, resolveu ver do que se tratava. Logo à entrada, a escultura “A Fome e o Brado” chamou a atenção do adolescente: estátuas de olhos arregalados e ossos visíveis, encostadas umas às outras, sem individualidade. Por trás do amontoado de gente e ossos, uma mão em robusto desespero, aberta em direção ao céu, q é para onde se brada à espera da saída para a fome. Fome de quê? Impossível não se emocionar com essa escultura. As fomes humanas se manifestam todas com a mesma intensidade, são todas retratáveis pela mesma imagem. Aparecem à frente de um brado em desespero, rumo a um céu de onde, às vezes, cai apenas chuva, perpetuando a fome... Juscelino se lembra de mostrar respeito: chuva, para quem mora à beira de um rio recifense, é a ameaça pingando sobre o mundo. Um detalhe impressiona o garoto: são os ossos expostos nas esculturas – costelas, metacarpos, mandíbulas salientes. Impressiona-se, mas não sabe por quê... Raciocina que esse, afinal, é o nosso lado de dentro – ossos. O que Juscelino ainda não sabe é que, por vezes, aquela alma ossuda – nosso legado em qualquer fome – insiste em se exibir, mostrando, no peito vazio, ossos; nas mãos sem sentido, ossos; no rosto deformado por choro ou insônia, cada vez mais ossos. Alma rota, alma amarrotada, com olhos fundos de desesperança: o pleno retrato da fome do mundo, da qual não escapa nem quem come seis vezes ao dia... Juscelino caminha pela exposição, seus olhos agora estão muito mais abertos do que quando entrou. Ao lado, outra escultura: “Desamparados”. Capturada a penúria humana: personagens cujas bocas escancaradas são buracos profundos de onde se adivinha um grito, buracos sem dentes – e para que haveria dentes, se aquelas bocas não comem nem riem? Juscelino sente a garganta apertada, mas não entende os motivos – ainda não aprendeu a fazer sentido. Resolve que escultura é uma arte incômoda e vai olhar os desenhos pendurados na parede da galeria. Mas sua sensibilidade já fora tocada, não havia como recuar. Nos esboços a lápis, retratos de uma penúria em que humanos e porcos se confundem. Num dos quadros, uma mocinha que o olhava, como se lhe perguntasse “e agora?”. Ele viu a data do quadro: 1962. Sua mãe tinha 12 anos naquela época e uma vida semelhante. Ou não? Na outra pintura, quem lhe aparecia era a figura da avó a carregar uma lata d’água na cabeça e duas crianças ao lado: ele e sua mãe. Com a cabeça tonta e os olhos úmidos, Juscelino saiu da galeria, ofegante: havia se visto, havia se reconhecido nas obras, havia tocado o desamparo da sua essência humana. Mas como, se nunca experimentara aquelas realidades? Antes de ter respostas, olhou pela porta de vidro e viu, a despeito da fome e do desespero ao redor, a escultura de um casal: seus corpos sentados um ao lado do outro, num abraço que os transformava em metades. Olhavam-se nos olhos e quem os olhava via a mesma face em ambos – espelho, fusão, amálgama.Completude, enfim? Talvez a fome humana seja melhor suportada a dois. Juscelino se lembrou de uma frase que ouvira na escola: é que só a antropofagia nos une... E, para aquela boca sem dentes que descobrira em si, esboçou, enfim, um sorriso completo.

                                                                      

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