terça-feira, 2 de junho de 2009

Estilhaços

Não sei o que faço. Não sei o que digo. As palavras esquecidas retornam e entornam sobre mim seu veneno latente. Apenas respirando, sigo. E, apenas respirando, espalho o veneno. “Chega!” – grita alguém dentro de mim, com minha voz. “Chega”, repito baixinho, com voz estranha. O tapete de meus sentimentos não existe, resta o chão, com sua frieza de dia recém-nascido. Átomos soltos – o que sobra. Meu grito é quase sempre contido. Mas dessa vez uivei de dor, uivei tão alto como jamais deveria ousar. Uivei de uma dor ilógica e estilhacei as estrelas de vidro. Cortei-me nos cacos que caíram, pontiagudos todos. O que me sobra? O chão frio dos sentimentos conflitantes, sem tapete, ensangüentado, e com bastante poeira. Sobra a noite escura e uma lua cada vez mais minguante. Não haverá plenilúnio e, se houver, obrigatoriamente as pessoas erguerão os olhos para contemplar o eclipse. Não falo por mim, que já não me conheço. Falo pelo que já fui, já tive e já pensei. Falo baixo, mais do que de costume. Atlas, num momento de dor, ousa retirar dos ombros o globo, só para perceber que não pode livrar-se dele, é seu eterno castigo. Por que pecado mesmo? Já não faz diferença, seja seguida a inércia, carregue-se o globo nas costas esfoladas. Engula-se a dor em prol da integridade das gargantas alheias. Proíbam-se os uivos. Como conter de indicador em pé o grito lancinante da dor? Como colher com um indicador em pé os cacos das estrelas estilhaçadas? Não há respostas. Para uma parte das perguntas não-retóricas nunca haverá. Justificativas, explicações, respostas... nada é necessário. Nada é útil. O globo pesa sobre as costas esfoladas, enquanto o uivo reprimido entala na garganta milhares de estilhaços estelares. “Engula as estrelas!” – diz-me a voz. “Sufoque a dor!”. Convenço-me de que o que se espera de mim é mais do que posso carregar, meus ombros estão esfolados e doem. Não posso ser culpada pela angústia de Atlas. Assumo a culpa ainda assim, mas sei que são estilhaços a me rasgar a goela, a despejar meu sangue sobre o tapete, agora inexistente, dos sentimentos que já tive e não reconheço. O uivo de dor, se permitido, provocaria alívio, quem sabe. Mas sob o globo cada vez mais plúmbeo, já não há fôlego. Cada palavra é abortada, sem que se note. Sem um movimento em socorro. Sem a dignidade de uma lágrima de adeus. Nada valeu? Contemple-se o eclipse. O plenilúnio morreu entalado de estrelas.

4 comentários:

  1. "tapete de meus sentimentos não existe, resta o chão, com sua frieza de dia recém-nascido."

    entre outras frases que soaram como machados no mar de gelo que há em mim...

    sem palavras...

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  2. Esse fechamento é de cortar o coração de qualquer astrônomo. Muito bom.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Ufa! Quando eu voltar a respirar, eu comento aqui!

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