quarta-feira, 24 de junho de 2009

Carta a Mia Couto

Sr. Mia Couto:

Chegou às minhas mãos ontem um seu livro, o fio das missangas, que me deixou em dilema constante. Ao mesmo tempo que não consigo parar de ler, não desejo que acabe. E vai findando, contra minha desabrida vontade. Já passa do meio. De modo que resolvi, dado o poder da lembrança, fazer o que fazia quando menina: fechei meus olhos de dentro, desejando criar um mecanismo de auto-renovação. Quando eu era criança o nome era: auto-enchimento. E eu usava esse artifício quando a pipoca ameaçava acabar do saco, ou os biscoitos do pote. Eu os auto-enchia com a imaginação. Como posso auto-encher seu livro, Sr. Mia Couto? Minha invenção funcionava ao apertar de um botão. A mágica se encarregava do resto. Aqui usei várias teclas para escrever essa carta, usei vários botões para telefonar a editoras e pessoas que me pudessem endereçar estas palavras, já perco a esperança de fazer com os dedos movimento diverso do apertar de botões. Serei feliz se pensar que de cada botão penderá uma flor em conto, com as cores de seu versejamento. Porque sinto, sinto muito ao perceber, com a alegria medrosa que me cerca nas grandes descobertas, que verei em seus textos as mesmas cores que vejo nos de uma conterrânea minha, contemporânea de outros brasileiros já idos: uma certa Clarice, de um mundo Lispector. Desde 1977, ela não publica mais nada, descansada que está nas acomodações subterrâneas que se escavam para os idos. Mas, após todas as obras que ela deixou, sinto irresistível vontade de ler a próxima, aquela inescrevível. E, com certo alívio (e tristeza inevitável), vou chegando ao fim de seu livro, pensando no próximo que lerei, no próximo que escreverá e nos que necessitarei num tempo maior que a vida, se a vida não se for a tempo... Agora me diga cá se já não são poucas as necessidades do mundo que o senhor me venha produzir mais? Ainda assim, lhe peço, verbalize os sentimentos que lhe chagam, pinte-os e acetine-os e, sim, continue enviando-os, porta afora, parolando pelo mundo. Porque uma necessidade tal, quando se instala, é capaz de matar por falta da palavra exata. E não estranhe que lhe escreva uma carta dessas, é que há muito decidi não morrer de palavra enterrada, nem me findar sem ter dito tudo.

Um comentário:

  1. Eu sabia! Eu sabia! Não ia demorar para que você tombasse a ele! :) Que Mias, Clarices e Lilis continuem, onde há flor, vendo além... Beijo.

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