sábado, 18 de julho de 2009

De tanto bater, meu coração quase parou...

Havia a dor, que a incomodava e lhe tirava o apetite. Era a maior sensação de desconforto que conhecia, inflamação nos tendões da perna direita, como lhe dissera o médico. Na casa cheia de pessoas queridas, a dor a obrigava a confinar-se no quarto de um dos anfitriões e a perder o companheirismo que tanto ansiava. Quase perder, na verdade: seu amigo veio ao quarto fazer-lhe um pouco de companhia. Também ele se obrigava a um certo confinamento, menos visível que o de Marta. Seu nome era Alfredo, era um pouco mais velho que ela, sensível e triste. E a combinação dessas três coisas despertava em Marta o sentimento confuso que se costuma chamar paixão, em português, como se exigisse sempre sofrimento (o inglês o exprime muito melhor ao dizer to fall in love. Queda causada pela vertigem e, como em toda queda, aproximação, atração, contato e, claro, às vezes, sofrimento). Agora, porém, Marta sofria muito mais com sua perna, que insistia em comportar-se como hóspede reclusa. Alfredo, percebendo o desconforto, sentou-se numa cadeira relativamente próxima a ela e a entreteve com suas conversas: era um de seus pontos fortes, sabia ter conversas inteligentes que a envolviam por completo. Marta olhava, mas não distinguia os traços do rosto de Alfredo. Era míope e estava sem óculos. Guardaria para sempre a lembrança da conversa com o vulto de quem amava. Falavam, quase sempre, de música, o que estimulava Alfredo a, em algum momento da conversa, pegar seu violão e fazer de Marta sua expectadora única. Ela se deixava cair, absolutamente entregue à vertigem. E esqueceu-se da perna que, cansada dos tremores ocasionados pelo violão de Alfredo, parou de doer. Após a música, ele saiu do quarto por alguns instantes e Marta, sentindo-se melhor, levantou-se da cama e começou a olhar os discos de vinil, preciosidades que só o amor explica. Não percebeu quando Alfredo voltou e, numa brincadeira, ele a assustou. Ao ver que o susto havia sido maior do que pensava, abraçou-a, afagando seus cabelos. Queda, aproximação, contato... Seu coração: tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum. O silêncio era absoluto, mas em algum lugar cantava Sinatra: I fall in love too easily, I fall in love too fast... Não, não era too easily: exigiu um abraço, um afago e a cura de uma dor. E não, não era too fast: o tempo desse abraço não se podia medir pelo relógio, nas quedas o tempo se dilata. Os olhos míopes de Marta viam o quarto girar enquanto sua cabeça tonta sentia-se amparada pelos braços de Alfredo. Quanto à perna que doía, já não a sentia, a queda a amortecera, o que prova que paixão é um termo inverossímil: às vezes o sofrimento acaba quando começa a queda. Quando foi embora da casa dos amigos, Marta sentiu saudades do que não sabia. Era uma vontade de concretizar o vazio. Era o vento que batia em seus cabelos enquanto caía, com o coração acelerado, esperando que os braços de Alfredo a amparassem. Mas, os ventos mudaram de rumo. E as circunstâncias o deixavam cada dia mais distante de Marta. Viam-se em concertos, coincidentemente, pois a música sempre os uniria, mas não se freqüentavam mais. Seis anos se passaram e Marta ainda sentia o coração acelerar ao menor sinal de vento. Caía uma queda infinita que, contrariando a lógica das quedas, não trazia aproximação nem contato. Caía numa espécie de vácuo, sem referenciais que lhe pudessem orientar a trajetória. E às vezes indagava-se se caía mesmo ou se estava parada no vazio, com o coração a bater-lhe nas têmporas, nas pernas, nos dedos dos pés. Mas não havia respostas: ali era o vácuo e o vento não a alcançava mais. Só a esperança lhe fazia companhia... Por quanto tempo duraria a queda? Talvez houvesse um fundo no buraco negro. Talvez... Por enquanto, ansiava o milagre de ver Alfredo, estendidos os braços, à sua espera. De vez em quando, ele aparecia, os braços prontos a um abraço. Depois do abraço, a volta a uma queda solitária e a dúvida: teria sido sempre a única a cair? Nunca caíram juntos? Marta adormeceu e sonhou com Alfredo bem próximo a ela, como depois de um abraço. Ela lhe perguntou: já caíste comigo? E ele disse: sempre. Seu coração disparou, num ímpeto que a acordou. Na esperança de continuar o sonho, sem nem abrir os olhos, virou a cabeça e voltou a dormir. Lá estava Alfredo, a mesma cena, ela perguntou-lhe novamente: já caíste comigo? E ele respondeu, desta vez: Lamento, mas não, nunca. Seu coração mais uma vez a acordou, sobressaltado. Marta suava e sentia febre. Nunca? Sempre? Qual das respostas a perturbava mais? Não havia forças para movimentar nenhum outro músculo, apenas seu coração batia sem parar tum-tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum, até que... até que viu Alfredo no fundo do buraco negro onde caía. E ele estava com as mãos nos bolsos, não, não era isso, ele estava com os braços cruzados, não, ele estava, mas como pode ser, ele estava, não era possível, mas sim, ele estava sem os braços! Marta não conseguia enxergar sem os óculos, mas via os contornos do corpo de Alfredo, sem contudo ver seus braços. Para evitar que seu coração desesperado parasse de bater, pegou a foto que trazia dele e a pôs em frente aos olhos. Lá estava, com os braços, seu amigo. Porém, o rosto não era nítido, era como no dia fatídico da conversa no quarto, era um vulto, um vulto que ela amava. Todas as fotografias de Alfredo que carregava tinham aquele rosto desfocado. E assim o guardaria. Sem foco e sem outro destino que o de ampará-la nos braços ao fim da queda, depois de um tempo profético que ninguém conheceria até que chegasse. E que chegaria... ou não. Dormiu outra vez e, como não tinha outro parâmetro para os sonhos, sonhou com ele. Dessa vez era ele quem a procurava para lhe dizer: nunca caí com você, mas sua eterna queda me levantou do chão, e hoje sou feliz. Mensagem enigmática dos sonhos que Marta não entendeu. Serviu-lhe, não como inspiradora de atitudes, mas como revelação: queria que Alfredo fosse feliz, mesmo que não a apontasse como elemento vital à felicidade. Parecia simples: apontar-lhe caminhos que o levariam a estados de graça e fazer isso sem custo. De vez em quando, ao perceber que ele se afastava dos atalhos mais felizes, mostrar-se qual guia, ou placa, ou seta. Não deixá-lo sofrer mais do que já sofrera longe de seus cuidados. Marta sabia de suas perdas. Ansiava pôr sua cabeça no colo e afagar-lhe os cabelos, consolando-o pelas atrocidades do mundo. E nesse desejo, dissolvia-se. Seria por isso que caía infinitamente? Desejava tornar-se o atalho mais feliz que ele poderia trilhar. E por isso caía, por isso esperava. Sofria para fazer-lhe companhia, para que ele não sofresse sozinho. Sentia suas perdas mais do que qualquer outra pessoa. Até vê-lo sem os braços no fundo daquele buraco negro e perceber que sofria só. Foi a revelação disso que a fez olhar para a foto. Sofrer só era inútil, não se enquadrava nos seus objetivos. Nessa hora, com a fotografia de novo no bolso, sentiu novamente as pernas – havia chão sob seus pés. Pôs-se de pé e caminhou, espantada. Chegara ao fundo do buraco, a queda cessara, e onde ele estava? Ela não sabia, não o via ali. Apenas sentia seu coração diminuir de ritmo, desacelerando, até que quase não o ouvia. Haveria outros braços a esperá-la? Ao longe, tum, tum, tum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário