quinta-feira, 9 de julho de 2009

Tempos avaros

Sabia que com o tempo compreenderia. Quando criança, se não entendia alguma coisa, guardava isso num baú de memória, sentindo a certeza de que um pouco de tempo era o ingrediente a faltar. E agora que o futuro chegou, o dia apresentava-se em linhas claras, com todas as expectativas. Mas... o tempo a haveria de decepcionar. Chegando de viagem, não apenas um, mas inúmeros tempos, cada qual com sua cor e fisionomia própria: um portava diploma, outro fotografia, outro dentadura... Mas alguns vinham de mãos completamente vazias e sem nenhuma surpresa no bolso... A existência de tempos avaros fazia nascer nela uma revolta, revolta armada até os dentes, à espera do comando: ATACAR! A guerra havia começado em outros acampamentos, mas seu pavilhão não se deslocara. Ainda. A qualquer momento, armas em punho, ela lutaria pela imagem que carregava (ou pensava carregar?). Inquiriria dos tempos vazios o que faziam lá, se ainda não tinham a oferta devida. Mas eles eram todos mudos, os tempos. Vez ou outra, um deles assoviava. Era só. Nada além de um assovio inútil. Ela pensava em letras, que formavam sílabas e daí palavras. Sim, pensava assim mesmo, por escrito. Palavras escritas sobrevivem aos tempos mudos, sempre dispostas a responder. O comando de guerra aproximava-se, sentia-se o estremecer do chão pisado por botas magnificamente lustradas, sentia-se o marchar dos soldados. O que fazia ela, mulher delicada e sensível, que sangrava sempre por dentro, num acampamento de guerra? Talvez tentasse sangrar por fora, em ferimento visível e irrefutável, que um tempo pudesse sarar. Estava cansada das pancadas invisíveis que não se curavam nunca e doíam com a chuva, com o sol e com o vento dos assovios que tempos irreconhecíveis cantarolavam. Chegou a voz de comando ao seu batalhão: ATACAR! Arma empunhada, passo de marcha atrás da companhia e a certeza de que não era o tempo de apertar o gatilho: não sabia manejar sua arma. Talvez fosse mais hábil com arco e flecha, mas o que tinha era uma espingarda, ou seria carabina? Sabia lá qual era a diferença. E no fim, apertar o gatilho é um movimento só, único para qualquer arma. Com o dedo a postos, esperava a ordem. De repente, no assovio de um dos tempos, o grito: FOGO! Puxou o gatilho e viu sangue sobre sua farda. Nem havia notado que estava fardada... O coração acelerava, sangue de outras pessoas respingavam nela, sentia-se livre, sentia que era o tempo de tudo aquilo. Ofegava, as pernas bambeavam, mas devia ser adrenalina em borbotões a inundar-lhe as veias. Um olhar mais atento e percebeu: o sangue a empastar sua roupa era seu. E sua arma não era menos que um canhão! Sem os órgãos vitais, surpreendia-se de notar que todos os sentidos permaneciam seus, atentos e examinadores, apalpando a circunstância e farejando o ar. Sem opção – era o que o assovio de um tempo perdido finalmente conseguiu comunicar-lhe. Sentada com as pernas dobradas, ela envolvia os joelhos com os braços, deixando a cabeça baixa, até a guerra terminar. Não podia ser o tempo de morrer. Seu suicídio não foi proposital. A culpa era dos tempos avaros...

2 comentários:

  1. Tás vendo? Não é só o reluzir-esverdeado da aranha que nos angustia...

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  2. Que maravilha é a memória, que poder tem a leitura... Este texto, hoje, significa diferente para mim. As imagens são outras. Já consigo "ouvir o assovio de um tempo perdido [que] finalmente conseguiu" se comunicar. E não tenho opção. Obrigada por me lembrar.

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